Micro e Minigeração Distribuída de Energia e o ICMS

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A possibilidade de os consumidores cativos gerarem sua própria energia elétrica de forma compartilhada passa a ter previsão normativa com a edição da Resolução Normativa ANEEL nº 687, em 2015[1]...

Por Daniel Jardim Sena PRO

 

A possibilidade de os consumidores cativos gerarem sua própria energia elétrica de forma compartilhada passa a ter previsão normativa com a edição da Resolução Normativa ANEEL nº 687, em 2015[1]. Tal norma teve origem na crise energética pela qual passava o país naquele ano, em que os reservatórios das usinas hidrelétricas estavam em níveis calamitosos e o risco de “apagão” era real.

 

Com o fim de fomentar a utilização de fontes alternativas de energia e, ao mesmo tempo, reduzir a pressão de consumo do Sistema Elétrico, a ANEEL aprovou as ferramentas de autoprodução de energia, a partir de fontes renováveis.

 

No mesmo ano, dado todo o contexto da inovação normativa, o Confaz editou o Convênio Confaz nº 16, por meio do qual autorizou os Estados a isentarem o ICMS sobre tais operações. Em um primeiro momento, salvo algumas exceções, os Estados aderiram ao referido Convênio e introduziram em suas próprias legislações a norma isentiva do ICMS.

 

Com isso, vários projetos de produção de energia a partir de fontes renováveis, nas modalidades de “micro ou minigeração compartilhada” ou “autoconsumo remoto” foram implementados no Brasil sem que o ICMS fosse causa de qualquer preocupação por parte dos investidores desses projetos.

 

No entanto, recentemente, tem-se visto de forma cada vez mais clara a movimentação dos Estados no sentido de revogar a isenção em questão ou, ao mesmo, restringi-la. Dado que a maioria dos Estados brasileiros vivenciam severas dificuldades nas contas públicas, a arrecadação que os crescentes projetos de micro e minigeração de energia poderiam gerar certamente chamaram a atenção.

 

Na medida em que o Convênio Confaz nº 16/2015 tem o condão de autorizar a concessão do suposto benefício fiscal, os Estados poderiam, na execução de suas políticas fiscais, definirem se instituem ou não o benefício.

 

Ocorre que, no caso da micro e minigeração de energia distribuída, nos termos dispostos na Resolução ANEEL nº 482/2012, é absolutamente inapropriado pretender cobrar ICMS sobre a energia gerada. Em que pesem as boas intenções que cercam a edição do Convênio Confaz nº 16, de 2015, é importante que se esclareça que tal instrumento normativo acabou operando uma grande confusão conceitual, a partir da qual os Estados passaram a defender que poderiam tributar as operações em comento.

 

Isso porque o Confaz, ao autorizar os Estados a concederem isenção, dá a entender que a micro e minigeração distribuída, sujeita ao sistema de compensação, estaria, em princípio, abrangida pela hipótese de incidência do imposto. Contudo, por não se caracterizar como uma operação mercantil de venda de energia elétrica, os Estados, como será melhor detalhado a seguir, não possuem sequer competência tributária para instituir tributo sobre as referidas operações.

 

Dessa forma, o Confaz, ao autorizar os Estados a concederem isenção, acaba, na verdade, por editar “letra morta”, pois autoriza a concessão de isenção para uma operação sobre a qual eles jamais detiveram competência tributária.

Competência tributária, hipótese de incidência e a micro e minigeração distribuída de energia

 

É sabido que todo o poder de tributar emana da Constituição Federal, a qual tem o condão de atribuir a cada ente federativo a respectiva competência para instituir tributos. Tal competência é modelada por meio de uma norma constitucional que permite a instituição de dado tributo, devidamente conjugada com as normas de limitação ao poder de tributar.

 

Obviamente, é impensável que qualquer ente federativo pretenda cobrar tributos sobre fatos, atos ou negócios jurídicos que não estejam nos estritos limites de sua competência tributária.

 

Nesses termos, o art. 155, inciso II, da Constituição Federal, atribui aos Estados e ao Distrito Federal a instituir tributos sobre “operações relativas à circulação de mercadorias (…)”. Para compreender os exatos limites da competência tributária atribuída por esse dispositivo constitucional, faz-se necessário avaliar o conteúdo semântico dos termos (i) operações, (ii) circulação e (iii) mercadorias.

 

Na lição de Paulo de Barros Carvalho[2] , “operações, no contexto, exprime o sentido de atos ou negócios hábeis para provocar a circulação de mercadorias. Adquire, nesse momento, a acepção de toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento”.

 

No mesmo sentido,  Horácio Villen Neto[3] ensina que “operações são atos ou negócios jurídicos em que ocorre a transmissão de um direito. Operações relativas à circulação de mercadorias são quaisquer atos ou negócios jurídicos, independentemente da natureza jurídica específica de cada um deles, que implicam a circulação de mercadorias.

 

Disso denota-se que somente estarão sujeitos ao ICMS a circulação de mercadorias que decorra de atos ou negócios jurídicos especificamente regulados pelo Direito. Ou seja, por óbvio, a circulação de mercadoria em função, por exemplo, de um evento da natureza, não poderá jamais ensejar o tributo.

 

No que se refere ao termo circulação, Geraldo Ataliba[4] esclarece que ele “significa para o Direito mudar de titular. Se um bem ou uma mercadoria mudam de titular, circula para efeitos jurídicos. Convenciona-se designar por titularidade de uma mercadoria a circunstância de alguém deter poderes jurídicos de disposição sobre a mesma, sendo ou não seu proprietário”.

 

Em outra obra, o mesmo autor é ainda mais claro: “… ‘circulação’, tal como constitucionalmente estabelecido, há de ser jurídica, vale dizer, aquela na qual ocorre a efetiva transmissão dos direitos de disposição sobre mercadoria, de tal forma que o transmitido passe a ter poderes de disposição sobre a coisa (mercadoria)”[5].

 

Finalmente, como mencionado, para que haja a possibilidade de instituição do ICMS sobre determinado fato jurídico, este, mais do que se tratar de uma operação de circulação, deve ter como objeto não qualquer tipo de bem móvel, mas sim um bem móvel enquadrado como “mercadoria”. Nesses termos, faz-se importante colacionar a doutrina de Roque Antônio Carrazza[6]:

 

    Não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão-só aquele que se submete à mercancia. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria. (…) é mister que tenha por finalidade a venda ou revenda. Em suma, a qualidade distintiva entre bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-se no propósito de destinação comercial. (…) um bem de uso próprio (v.g., uma geladeira) não é mercadoria. Quando vendido, a terceiro, por seu proprietário, não faz nascer a obrigação de pagar ICMS. (…) Situação diversa ocorre quando a geladeira é comprada e revendida por uma loja de eletrodomésticos. Aí, sim, ocorre a operação mercantil, ensejando a tributação ou via de ICMS.

 

Analisados os aspectos relativos à competência tributária para a instituição do ICMS, faz-se necessário avaliar a natureza das operações de micro e minigeração de energia compartilhada, sujeita ao sistema de compensação de energia elétrica, nos termos da legislação do setor elétrico. A Resolução Normativa ANEEL nº 482/2012, com as alterações promovidas pela Resolução Normativa ANEEL nº 687/2015, assim define a micro e minigeração distribuída de energia elétrica (art. 2º, inciso II):

 

    Art. 2º. Para efeitos desta Resolução, ficam adotadas as seguintes definições:

    I – microgeração distribuída: central geradora de energia elétrica, com potência instalada menor ou igual a 75kW e que utilize cogeração qualificada, conforme regulamentação da ANEEL, ou fontes renováveis de energia elétrica, conectada na rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras;

    II – minigeração distribuída: central geradora de energia elétrica, com potência instalada superior a 75kW e menor ou igual a 5MW e que utilize cogeração qualificada, conforme regulamentação da ANEEL, ou fontes renováveis de energia elétrica, conectada na rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras;

 

Os incisos VII e VIII, do mesmo dispositivo normativo, definem, respectivamente a “geração compartilhada” e o “autoconsumo remoto”:

 

    VII – geração compartilhada: caracterizada pela reunião de consumidores, dentro da mesma área de concessão ou permissão, por meio de consórcio ou cooperativa, composta por pessoa física ou jurídica, que possua unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída em local diferente das unidades consumidoras nas quais a energia excedente será compensada;

    VIII – autoconsumo remoto: caracterizado por unidades consumidoras de titularidade de uma mesma Pessoa Jurídica, incluídas matriz e filial, ou Pessoa Física que possua unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída em local diferente das unidades consumidoras, dentro da mesma área de concessão ou permissão, nas quais a energia excedente será compensada.

 

Como está expresso nas normas mencionadas, toda a energia produzida será aproveitada por meio do “sistema de compensação de energia elétrica”, o qual é assim definido pelo inciso III, da mesma resolução:

 

    III – sistema de compensação de energia elétrica: sistema no qual a energia ativa injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída é cedida, por meio de empréstimo gratuito, à distribuidora local e posteriormente compensada com o consumi de energia elétrica ativa;

 

Como se afigura claro pela mera análise das normas regulatórias, a possibilidade criada de micro e minigeração de energia elétrica por consumidores cativos jamais teve o condão de desconstituir ou excepcionar o monopólio estatal na exploração da geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Ao admitir o modelo de geração compartilhada, a própria ANEEL foi bastante cuidadosa ao não permitir que ele fosse utilizado de forma a simular uma operação mercantil:

 

    Art. 6º-A. A distribuidora não pode incluir os consumidores no sistema de compensação de energia elétrica nos casos em que for detectado, no documento que comprova a posse ou propriedade do imóvel onde se encontra instalada a microgeração ou minigeração distribuída, que o consumidor tenha alugado ou arrendado terrenos, lotes e propriedades em condições nas quais o valor do aluguel ou do arrendamento se dê em reais por unidade de energia elétrica.(Resolução Normativa ANEEL nº 482/2012, com redação da Resolução Normativa ANEEL nº 687/2015)

 

Todo o espírito da regulamentação da micro e minigeração distribuída parte do pressuposto de uma produção complementar de energia, para utilização própria, por meio do sistema de compensação. É que, dada suas características físicas, a energia elétrica não é um bem “estocável”. Ela é consumida de forma imediata à sua produção, sendo impossível determinar toda a sua movimentação desde o ponto de geração até o ponto de consumo senão por meio de ficção jurídica.

 

Dada essa especificidade, as normas se valem do sistema de compensação de energia elétrica para assegurar que o montante de energia gerada por uma entidade seja de fato consumido pela própria entidade geradora. E qualquer tentativa de comercialização dessa energia é expressamente vedada e penalizada pela agência reguladora.

 

Com vistas a tornar o sistema de compensação de energia elétrica operacional, é fundamental a participação das empresas distribuidoras. Nesse sentido, as normas regulatórias classificam a geração excedente de energia por determinada entidade como um empréstimo gratuito de bem fungível à distribuidora, a qual deverá restituir o bem recebido no exato momento em que a entidade mutuante efetua seu consumo:

 

    Art. 6º. (…)

    §1º. Para fins de compensação, a energia ativa injetada no sistema de distribuição pela unidade consumidora será cedida a título de empréstimo gratuito para a distribuidora, passando a unidade consumidora a ter um crédito em quantidade de energia ativa a ser consumida por um prazo de 60 (sessenta) meses.

 

A despeito da classificação das normas regulatórias como empréstimo fungível, na prática, o sistema de compensação de energia elétrica acaba atribuindo à distribuidora o papel de agente custodiante da energia gerada pela central de micro ou minigeração de energia.

 

De todo modo, pode-se notar claramente que a micro e minigeração distribuída, seja na modalidade de geração compartilhada, seja na modalidade de autoconsumo remoto, não se amolda ao núcleo de incidência do ICMS.

 

Como mencionado anteriormente, para que se possa exigir o ICMS, é necessária a ocorrência de um ato ou negócio jurídico (alcance semântico do termo “operações”) que tenha o condão de transferir a titularidade (alcance semântico do termo “circulação”) de determinado bem móvel no contexto de uma transação mercantil (alcance semântico do termo “mercadoria”).

 

No caso da micro e minigeração distribuída pelo modelo de autoconsumo remoto ou de geração compartilhada, o ato ou negócio jurídico é o de empréstimo gratuito, o qual se caracteriza por uma cessão em caráter precário da posse do bem e jamais terá o condão de ensejar a transferência de titularidade.

 

Mais do que isso. Na operação em comento não há onde se identificar a ocorrência de uma transação mercantil. Toda energia gerada é consumida pela própria entidade que a produziu. Tanto é assim que as normas regulatórias preveem todo um sistema para controlar a compensação da energia e veda expressamente que os institutos em questão sejam utilizados de forma dissimulada com o fim de ocultar a venda de energia.

 

Não é demais lembrar que o mercado de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica é explorado no Brasil em regime de monopólio estatal, no qual os entes privados só atuam por meio de concessão ou permissão. Diante disso, a ANEEL, por meio das Resoluções Normativas nº 482/2012 e 687/2015, sequer poderia excepcionar este formato.

 

A intenção das referidas normas é unicamente suprir uma matriz energética já esgotada, possibilitando que os consumidores cativos possam gerar a própria energia consumida, sem caráter mercantil, pagando apenas pelo serviço de utilização da rede de transmissão e distribuição (remunerada por meio do custo mínimo de disponibilidade).

 

Sendo assim, mostra-se evidente a inconstitucionalidade do Fisco Estadual em exigir o ICMS sobre a energia gerada no contexto da Resolução ANEEL nº 482/2015.

 

Fonte: Tributário