Uma discussão sobre o pagamento de tributos com cheque pré-datado

Últimas Notícias
Inicialmente, em se tratando da possibilidade de realizar o pagamento de créditos tributários por meio de cheque, é necessário frisar que o Código Tributário Nacional prevê expressamente tal possibilidade no artigo 162, inciso I...

Por Beatriz de Sousa Gonçalves e Brunno Philippe Werneck Soares

 

Inicialmente, em se tratando da possibilidade de realizar o pagamento de créditos tributários por meio de cheque, é necessário frisar que o Código Tributário Nacional prevê expressamente tal possibilidade no artigo 162, inciso I. Assim, em regra, o pagamento de tributos pode se dar tanto em moeda corrente quanto em cheque ou vale postal.

 

Analisando-se a legislação tributária pátria, todavia, não é possível encontrar qualquer menção à possibilidade de o pagamento de tributos ser realizado com cheque pré-datado. Neste momento, muitos dos leitores vão chegar à mesma conclusão que nós sobre o motivo dessa "lacuna jurídica" e que, em verdade, é mais uma obviedade: a figura do cheque pré-datado é uma verdadeira ficção jurídica, já que o cheque é um título de crédito que materializa uma ordem de pagamento à vista, conforme prevê o artigo 32 da Lei nº 7.357/1985.

 

Dessa forma, determinar que um cheque é pré-datado e fazer constar uma data futura não obsta o recebimento do valor do cheque na data de sua apresentação, uma vez que a instituição financeira é obrigada a pagá-lo na data em que for apresentado (artigo 32, parágrafo único, da Lei nº 7.357/1985). Essa prática, porém, pode gerar consequências jurídicas decorrentes da quebra da boa-fé objetiva do contrato e, por conseguinte, gerar a caracterização de dano moral (Súmula 370 do STJ).

 

Nesse sentido, por mais que o cheque pré-datado seja uma criação verdadeiramente costumeira, fato é que tal prática encontra algum respaldo jurídico na jurisprudência pátria, tanto o é que a própria Súmula 370 do STJ prevê que caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado. Assim, se inexiste norma vedando a utilização de cheque pré-datado para o pagamento de tributos, se a jurisprudência reconhece a existência de efeitos jurídicos decorrentes da referida prática e, sobretudo, adotando-se uma visão de uma Administração Pública consensual, é realmente apartado da juridicidade administrativa permitir o pagamento de tributos com cheque pré-datado?

 

Na nossa opinião, não há um certo ou errado absoluto como resposta para tal pergunta. A resposta vai depender muito mais da situação concreta analisada, sobretudo da legislação tributária do ente federativo, do que efetivamente de uma afirmativa genérica como "é possível ou não é possível".

 

Há de se mencionar, contudo, que 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento de Apelação nº 994.08.101265-7 [1], em demanda que versava sobre improbidade administrativa, entendeu que "a quitação de tributos com cheque pré-datado configura irregularidade administrativa e infringe a lei".

 

O acórdão não explica, entretanto, as razões jurídicas que embasam tal assertiva, mas indica somente que o cheque pré-datado dos autos era de propriedade de terceiro e analisa a referida conduta com diversas outras que inegavelmente atentam contra o erário público, como, por exemplo, a autorização do pagamento de recibos e notas fiscais antes de formado o processo de despesa e o atesto de recebimento de materiais e serviços que nunca deram entrada no almoxarifado.

 

Dessa forma, tentando-se abstrair as circunstâncias dos autos, as quais ultrapassam a discussão jurídica ora proposta, se, no caso concreto, o cheque pré-datado fosse de propriedade do contribuinte ou responsável tributário (artigo 121, caput, e parágrafo único, incisos I e II, do CTN) e, principalmente, o valor do crédito tributário correspondesse fielmente àquele apontado no cheque, levando-se em conta eventuais juros, penalidades e correção monetária devidos até a data prevista no cheque, estaríamos diante de alguma irregularidade administrativa?

 

Diante do cenário em que a Administração Pública, buscando aumentar a arrecadação tributária, vale-se cada vez mais de instrumentos consensuais, tal como a própria ideia de transação tributária (Lei nº 13.988/2020), possibilitar que o contribuinte pague tributos com cheque pré-datado não parece destoar tanto assim da atual tendência, desde que, é claro, sejam estabelecidas medidas que garantam a idoneidade do pagamento, tais como: a previsão em lei, a existência de regulamentação do processo administrativo a ser seguido, a necessidade de atesto do setor de arrecadação tributária de que o valor do cheque corresponde ao valor da dívida na data proposta pelo contribuinte (sob pena de se estar legitimando renúncia de receita) e, ainda, que se aguarde o resgate do valor pelo sacado, isto é, é necessário que a instituição financeira/banco efetue a ordem de pagamento dada pelo emitente/sacador antes de o Fisco extinguir o crédito tributário.

 

Do ponto de vista prático, todavia, a admissão de cheques pré-datados como forma de pagamento de tributos pode trazer consideráveis dificuldades procedimentais para a Administração Pública, já que, em última análise, o ente federativo acabará atraindo para si um forte ônus. Cita-se, neste sentido, o fato de o cheque apresentado poder, em verdade, ser um "cheque sem fundos" e, ainda, ser bastante elevado o risco de que o título de crédito seja extraviado durante a tramitação do processo administrativo.

 

No caso de inexistirem fundos, o cheque apresentado fará com que a Administração Pública se veja obrigada a fazer uso dos meios necessários à execução da quantia devida (por meio de execução fiscal), de modo que todo tempo perdido entre a apresentação da ordem de pagamento e a verificação da inexistência de fundos terá sido em vão, atuação esta que acabaria indo em sentido contrário ao princípio da eficiência, consagrado no artigo 37 da CRFB/88.

 

Tratando-se, por sua vez, da necessidade de se reter o cheque na estrutura física do órgão público, tal prática pode gerar futuros transtornos ao ente, que mesmo tendo o dever de guardar e zelar pelo título de crédito, vai se ver obrigado a alocar em seus arquivos — comumente já assoberbados de processos — documento fundamental ao ingresso de valores ao erário, propiciando eventual desaparecimento ou até mesmo perecimento dos títulos, o que ocasionaria significativo prejuízo aos cofres públicos.

 

Poder-se-ia pensar, então, na necessidade de apresentação de garantia por parte do contribuinte ou do responsável tributário, em paralelo à apresentação do cheque pré-datado. Ocorre que tal exigência, porém, depende de lei autorizativa, não podendo vir a ser simplesmente exigida administrativamente pelo Poder Público. Ainda, certo é que tal possibilidade traria outros problemas de ordem prática para o ente público, inclusive no que diz respeito à escolha dos bens que poderiam ser admitidos como espécie de garantia, bem como no que tange à aferição do real valor econômico do bem apresentado — o que acabaria por tornar ainda mais burocrático o processo administrativo de pagamento.

 

Dentro da lógica até aqui apresentada, diante dos problemas de ordem prática que o pagamento de tributos por meio de cheque pré-datado pode causar à Administração Pública, é necessário que os entes federativos procurem medidas alternativas que sejam mais seguras e menos complexas para inovar e facilitar o pagamento de créditos tributários.

 

A título exemplificativo, traz-se à baila a medida recentemente adotada pelo município do Rio de Janeiro para pagamento do IPTU referente ao exercício financeiro de 2020, denominada pelo ente de "pagamento financiado" [2]. Tal medida autoriza o contribuinte a realizar o pagamento do imposto por meio de cartão de débito e crédito, podendo dividir seu pagamento em até 12 parcelas. Frise-se que o regime de parcelamento propiciado pelo pagamento facilitado alcança não só os impostos que podem ser pagos por meio de cotas, mas também os impostos que devem ser pagos à vista.

 

Portanto, é possível concluir que o pagamento de tributos por meio de cheque pré-datado não deve ser visto necessariamente como algo inviável do ponto de vista jurídico, de modo que é perfeitamente possível pensar na sua aplicabilidade, desde que seguidos alguns padrões que sirvam para garantir a lisura do pagamento. Contudo, do ponto de vista prático, sabendo-se que a citada modalidade de pagamento gera um desproporcional ônus à Administração Pública, notadamente no que diz respeito à própria insegurança quanto à tramitação do processo administrativo e ao efetivo recebimento dos valores devidos, entendemos que o Fisco deverá priorizar, tal como fez o município do Rio de Janeiro, outras medidas facilitadoras do pagamento ao sujeito passivo da obrigação tributária, mas que, ao mesmo tempo, correspondam a uma operação segura e efetiva para o ente público.

 

Defendemos, assim, com o presente artigo, a necessidade de se questionar cada vez mais as estruturas jurídicas já existentes, por mais ou menos complexas que sejam, visto que somente a inovação das tradicionais estruturas jurídicas permitirá a criação de mecanismos que facilitem o pagamento tributário e estimulem o aumento na arrecadação pública — prática essa que se amolda a uma Administração Pública atenta às exigências cada vez mais complexas da sociedade moderna e que se coaduna com gestões mais eficientes e consensuais.

 

Por fim, ressaltamos que, qualquer que seja a forma de pagamento do crédito tributário, seja em cheque pré-datado ou cartão de crédito, por exemplo, a eventual expedição de certidão negativa de débitos apenas poderá ocorrer após a data programada para o referido pagamento, com a respectiva comprovação do pagamento do valor devido, não havendo que se falar, portanto, na possibilidade de expedição de certidão negativa no momento de apresentação da ordem de pagamento.

 

Fonte: Conjur