Instrumento multilateral do Beps é mais um dilema para a América Latina

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O trato sereno com a diversidade e a aceitação da pluralidade no próprio indivíduo e no tempo em que vivemos vêm sendo cada vez mais esquecidos no dia a dia em que predomina a radicalização do ou eu ou eles, ou a minha ideia ou a outra...

Por Roberto Duque Estrada

 

“Há que não ter medo dessa diversidade. Essa relação serena com a pluralidade exige um trabalho de sedução. É preciso dizer: cada um de nós é feito de muitos. E o tempo em que vivemos tem muitos tempos dentro”

(Mia Couto)

 

No dia da publicação desta coluna — a última de 2015 —, estarei na Cidade do México participando como co-chair de uma das mesas da conferência The New Era of Taxation: The keys to providing legal advice on tax law in a rapidly changing world, organizada pela International Bar Association (IBA). Nesse modelo de conferência do comitê tributário da IBA, os palestrantes são sempre jovens advogados, aos quais se oferece a oportunidade de exporem, com liberdade, suas ideias sobre o futuro da profissão. Alguns estarão ali nervosos, falando pela primeira vez para uma audiência seleta; outros se sentirão mais seguros, seja por traços de personalidade, seja por já terem passado por experiências semelhantes. O mais interessante desse evento é ver ideias fervilharem, novas opiniões serem formadas, a construção da identidade profissional, tudo isso com a energia característica da juventude.

 

Mas vou para o México levando a dor e a indignação dos atentados de 13 de novembro em Paris, que banalizaram a morte de gente tão jovem. Jovens que saíram na noite boêmia daquela região parisiense para celebrar a sempre bem-vinda sexta-feira e foram trucidados por terroristas; esses também jovens, que se implodiram em nome de Alá ou foram mortos pelas forças de segurança. O mais duro é reconhecer que a guerra contra o terrorismo na Europa será uma guerra fratricida e intramuros: quem aterroriza são jovens europeus filhos de imigrantes que não conseguiram construir uma identidade europeia e vão encontrar uma nova identidade jihadista junto ao Estado islâmico, comprovando que sectarismo e intolerância só geram mais sectarismo e intolerância.

 

O trato sereno com a diversidade e a aceitação da pluralidade no próprio indivíduo e no tempo em que vivemos vêm sendo cada vez mais esquecidos no dia a dia em que predomina a radicalização do ou eu ou eles, ou a minha ideia ou a outra. Há baixíssima tolerância com diferenças, não há tempo para sedução, são escassos os espaços de reflexão e ponderação de valores. O comportamento das pessoas nas redes sociais é revelador desse imediatismo que só emburrece e aborrece.

 

Para fugir desse ambiente, só mesmo o oásis de reflexão madura que tem sido o evento semanal promovido pela Uerj em parceria com a Vale, dedicado à discussão das 15 ações do Plano Beps (Base Erosion Profit Shifitng), sob a coordenação geral do professor Marcos Lívio Gomes. No último dia 16 de novembro, tive a honra de participar do painel dedicado à discussão da Ação 15[1], que pretende desenvolver um instrumento multilateral destinado a concretizar as ações que demandam alterações ao texto de tratados bilaterais contra a dupla tributação.

 

Com efeito, como já tivemos a oportunidade de expor em coluna anterior[2], as medidas sugeridas no Plano Beps são concretizáveis por meio de alterações à lei interna, da edição de atos administrativos e também de modificações em tratados bilaterais contra a dupla tributação. Esse último é o caso das ações 2 (instrumentos híbridos), 6 (abuso de tratados ou treaty shopping), 7 (estabelecimento permanente) e 14 (solução de conflitos).

 

A alternativa do instrumento multilateral tem sido sustentada pela OCDE como a mais ágil e eficaz para concretização das medidas em questão, uma vez que seria extremamente complexo promover alterações em mais de três mil tratados bilaterais contra a dupla tributação atualmente em vigor. Acresce a isso o desafio do tempo, uma vez que o ritmo assustadoramente veloz da era digital promove, a todo tempo, mutações nas relações econômicas exigindo, por isso, respostas rápidas e eficazes para aperfeiçoamento do arcabouço jurídico. Do contrário, as medidas propostas tornar-se-ão rapidamente obsoletas.

 

Não obstante, é de opinião geral que o sucesso do instrumento multilateral pressupõe um consenso político de larga escala na ordem mundial, o que é quase impossível de alcançar quando na mesa de negociações se sentam países com diferentes graus de desenvolvimento, com economias muito distintas, que têm relações bilaterais com particularidades de difícil acomodação em um tratado multilateral. Tome-se, por exemplo, as relações bilaterais entre Brasil e Argentina, nosso mais importante parceiro comercial na região. É impensável promover alterações em nossa convenção contra a dupla tributação para acomodar interesses das grandes economias da OCDE em detrimento de uma agenda de compromissos e parceria histórica, fundamental ao equilíbrio regional.

 

Além disso, a experiência dos tratados multilaterais no domínio tributário não tem sido das melhores. Como exemplificou Daniel Cordeiro em sua exposição, a convenção multilateral para evitar a dupla tributação dos royalties de copyright, aberta para assinatura em 1979, ainda não entrou em vigor em virtude da baixa adesão dos países; a convenção sobre lei aplicável às sucessões, aberta para assinatura em 1989, apenas quatro países aderiram, tendo um deles posteriormente denunciado; a convenção sobre lei aplicável aos trusts e sobre o seu reconhecimento, aberta para assinatura em 1985, apenas 12 países aderiram.

 

Acresce que ainda pairam dúvidas quanto à posição que será adotada pelos Estados Unidos, que, conquanto esteja participando do grupo ad hoc criado pela OCDE/G20 para desenvolver o instrumento multilateral, por vezes emite sinais de desagrado com certas posições da OCDE, vista como um símbolo da burocracia europeia. Com efeito, recentemente, o secretário do Tesouro norte-americano expressou reservas quanto ao projeto Beps, especialmente em relação à Ação 15, colocando em dúvida a sua efetiva adesão ao instrumento, adesão essa considerada fundamental para o sucesso do projeto à escala mundial.

 

Do ponto de vista brasileiro, como bem anotado pelo doutor Moises Carvalho em sua exposição, o interesse do instrumento multilateral estaria centrado essencialmente na Ação 6, relativa às medidas que coibiriam o abuso no uso dos tratados, já que não temos maiores discussões jurídicas a respeito de instrumentos híbridos (Ação 2), o conceito mais amplo de estabelecimento permanente previsto nas convenções não encontra correspondência na lei interna (Ação 7) e a solução de conflitos tributários pela via da arbitragem não é admitida no Direito brasileiro (Ação 14).

 

O uso de tratados com a única finalidade de tirar proveito de benefícios que não existiriam ou seriam vedados se o tratado aplicável fosse com o do país de residência “natural” do investidor é conhecido vulgarmente como treaty shopping. Tomemos um exemplo hipotético para ilustrar a situação que se visa coibir: uma empresa norte-americana que vai investir na França em vez de fazê-lo diretamente, caso em que seria aplicável o tratado Estados Unidos-França, que não proporcionaria maiores benefícios, constitui uma sociedade holding na Holanda e, com isso, passa a aplicar os tratados Estados Unidos-Holanda e Holanda-França, eventualmente mais benéficos nas relações diretas.

 

Falar-se em evitar treaty shopping em jurisdições com uma vasta gama de tratados como França, Estados Unidos e Holanda faz todo o sentido, uma vez que se estariam frustrando a aplicação de cláusulas negociadas pelos Estados contratantes em razão da interposição de uma empresa domiciliada num outro país, muitas vezes despida de existência substancial, apenas para melhor acomodar interesses de economia fiscal.

 

Falar-se de treaty shopping com o Brasil já fica um pouco mais difícil, porque nosso shopping center tem poucas lojas — são apenas 32 tratados —, enquanto, por exemplo, países como o Reino Unido celebraram 148 tratados, a Holanda, 94, e Portugal, 71. Essa carência de tratados é o que muitas vezes justifica que o investidor estrangeiro canalize seus investimentos por meio de jurisdições que têm tratado e oferecem regimes de tributação mais competitivos para sociedades holding. Ora, não se pode simplesmente recusar-se a aplicação de tratados celebrados com o país de residência de sociedades holding investidoras se também não oferecermos alternativas para o investimento direto.

 

O desafio do Brasil é conciliar a ampliação da rede de tratados internacionais com uma política que iniba a prática do treaty shopping. Coincidentemente, esse será o tema da minha mesa na conferência da Cidade do México — “The need of an extended treaty network v. the opening to treaty abuse: the Latin American dilemma”

 

Para algumas correntes de pensamento não existe tal dilema, pois a solução é a ampliação das hipóteses de tributação na fonte nos países receptores de investimentos. No entanto, é certo que para os investidores a retenção exagerada na fonte, seja de imposto de renda, seja também de outros impostos e contribuições das mais variadas espécies que existem no Brasil (por exemplo, ISS, PIS/Cofins, Cide-royalties), acaba por reduzir ou eliminar o elemento de lucratividade da operação, pois está se tributando o preço da operação enquanto receita bruta, e não a componente de lucro da atividade, apenas determinável no país de residência pela consideração dos custos gerais incorridos pela companhia. Como consequência, invariavelmente os ônus tributários da operação são “empurrados” como custo para a fonte pagadora, pelo mecanismo do gross up, tornando as contratações de bens e serviços externos mais gravosas para os brasileiros.

 

Espero que no México os jovens palestrantes consigam formular novas ideias para vencer o dilema de compatibilizar mais ofertas de tratados com a coibição de abusos. E, particularmente no que concerne ao instrumento multilateral, que se construam soluções para permitir que ele não seja um instrumento dos países mais desenvolvidos que tolha a liberdade de negociação bilateral entre Estados parceiros, com agendas regionais particulares.

 

Fonte: Conjur