Crises e transição energética global pressionam Brasil a acelerar nova matriz

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País aumenta combustíveis fósseis na eletricidade, lida com baixas de insumos para renováveis e não assina acordos na COP26

A crise de energia que o mundo atravessa indica que, daqui para frente, a transição para a lógica de uma economia de baixo carbono pode impor ainda mais desafios: urgência para a diversificação de matrizes, implementação de novas tecnologias em larga escala e mudanças no consumo. No Brasil, a rapidez com que isso acontecerá depende de cessar o acesso a fontes mais poluentes e acelerar a adesão a fontes limpas, que enfrenta reveses.

Internacionalmente, a parte mais representativa do atual choque vem da China, onde apagões programados forçam a redução da demanda por energia elétrica, com o encarecimento do carvão e padrões de emissões mais rígidos. A crise tem efeitos na cadeia de suprimentos global – inclusive, para a produção de energia limpa no Brasil.

 

Ao mesmo tempo, no mercado global, a oferta de petróleo diminuiu na pandemia, e os preços dos derivados subiram, embora a produção de combustíveis fósseis não deva cessar tão cedo. A produção de petróleo pode aumentar 57%, a de gás 71% e de carvão 240% até 2030, segundo estudo financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pelo Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo, divulgado em outubro a partir da análise de 15 países entre os principais produtores.

Após as negociações da COP26, que estão acontecendo em Glasgow, na Escócia, parte dos prognósticos podem mudar, com a mingua de investimentos nesse sentido: um grupo de 20 países, entre eles os Estados Unidos, se comprometeu a não financiar novos projetos de combustíveis fósseis internacionalmente; países em desenvolvimento, como África do Sul, receberam recursos para transição à energia limpa; e uma aliança de investidores se comprometeu a mover US$ 130 trilhões para investimentos alinhados à meta de neutralizar emissões.

Entretanto, observando os acordos pelo lado do copo meio vazio, os esforços ficaram aquém das expectativas, com destaque negativo para o Brasil, que não assinou o acordo de financiamento externo e não participou do compromisso que busca eliminar o carvão mineral. Esse último, inclusive, deveria incluir 190 países, mas acabou com apenas 46, com os grandes produtores China, Índia e Rússia de fora.

Uma das principais questões nessa transição é como migrar para fontes neutras sem sacrificar o consumo de energia – o que significaria abandonar populações, já que na África Subsaariana, por exemplo, cerca de 60% das pessoas ainda não tem eletricidade, segundo o Banco Mundial. Não só isso. É preciso acomodar mais demanda, já que melhora da qualidade de vida depende significativamente dela. Evidentemente, os obstáculos variam entre as diferentes economias e o estágio em que se encontram.

Na contramão, termelétricas aceleram
No Brasil, mesmo com matriz pouco intensiva em carbono, também há uma corrida. Os efeitos do clima pressionam o fornecimento de eletricidade e trazem a imposição de repensar a dependência das hidrelétricas. Nos momentos de crise hídrica, como a atual, a matriz acaba se “sujando” com o aumento da participação de térmicas.

Agosto teve a maior geração nesse modelo na história, produzindo 12% a mais de energia do que na crise anterior, em 2015, de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Dentre as cerca de 3 mil centrais térmicas no país, 65% queimam fontes fósseis – a maioria é a gás natural, menos danoso do que diesel ou carvão, também usados. Há ainda 19 usinas em construção até 2026, sendo sete delas à base de combustíveis fósseis e o restante de biomassa.

Nesse segundo tipo, embora não haja emissão de carbono na produção de energia, a cadeia não está livre de impactos no aquecimento global, especialmente considerando o cultivo em monocultura (da cana de açúcar, por exemplo) e as questões envolvendo manejo do solo – lembrando que, no Brasil, o desmatamento e a agropecuária respondem pela maior parte das emissões.

Terreno fértil para eólicas no Semiárido
Apesar de esse tipo de geração representar cerca de 30% do total diário neste mês, em seguida, na casa dos 10%, há a contribuição eólica, que tem capacidade distribuída em 695 parques. A maioria deles está no Nordeste, onde quase 90% desse tipo de energia é produzido. A expectativa é de crescimento: neste ano, a maior parte de todas as novas usinas construídas no Brasil eram eólicas. Esse avanço é resultado de investimentos massivos no setor nas últimas duas décadas, inclusive do BNDES.

As vantagens dessa matriz são autoexplicativas: ela gera energia limpa, barata e, nas condições brasileiras, em quantidade abundante. O mercado tem essa percepção (tanto dos lados dos consumidores no mercado livre, que escolhem as fontes, quanto dos fornecedores) e mesmo as geradoras com projetos em outras áreas já estão se direcionando para essa mudança.

Em 2018, subsidiária brasileira da gigante do setor State Power Investment Corporation of China (SPIC) iniciou a operação da concessão da hidrelétrica São Simão, na divisa de de Minas Gerais e Goiás, em parceria com outra chinesa e fundos. Agora, nesse curto período, não está no horizonte investir mais em usinas instaladas dessa fonte. Ela opera termelétrica no Rio de Janeiro e usinas eólicas na Paraíba, principais objetivos. A ambição é estar entre os três maiores geradores privados de energia até 2025.

“No mercado livre, não há mais desvantagem financeira em escolher novas fontes limpas, então esse setor irá crescer pela demanda, sem depender de grandes esforços ou incentivos públicos”, avalia Carlos Longo, diretor de comercialização de energia da SPIC Brasil. “Nesse processo, o gás natural ainda participará da transição, desde que compensado com captura de carbono”, afirma ele, que já foi conselheiro Associação Brasileira de Energia Eólica.

Em contraste a grandes obras hidrelétricas nas últimas décadas, os parques eólicos também costumam ser defendidos como positivos no quesito impacto social. Em maio, ao divulgar financiamento da implantação do parque eólico Santa Martina 9, localizado em três cidades do Rio Grande do Norte, o BNDES destacou a perspectiva de aumento da renda familiar da população local. Os 350 empregos esperados representariam mais de 10% das pessoas ocupadas no grupo de municípios.

“O Semiárido é estratégico, mas não pode aparecer como um lugar a ser ocupado por empresas como se não houvessem biomas pessoas, culturas e problemas estruturais. É preciso pensar em incluir as comunidades, e não somente dar lugar a um processo de diversificação da matriz”, aponta Ricelia Maria Marinho Sales, professora da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba. Ela apresentou projetos de inclusão da população, especialmente mulheres, na transição energética durante a COP26 em painel promovido pelo Instituto Alziras.

Ainda, entre os avanços esperados com a energia eólica, que poderiam dar um salto na capacidade de geração, estão as instalações offshore (isto é, no oceano, alternativa muito usada na Europa), que o Brasil ainda não conta. Multinacionais como Equinor, Neoenergia, EDP e Engie já têm processos de licenciamento ambiental no Ibama para instalações.

Soluções internacionais
O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, aproveitou a COP26 para dizer que o modelo deve ser incluído no próximo plano decenal, a ser apresentado em fevereiro, mas ainda não há regulamentação definida sobre como isso se daria – e não descartou o uso das térmicas, defendendo a necessidade delas como reserva de capacidade.

Para aumentar o ritmo da representação eólica na matriz brasileira – a estimativa do ONS é que, até o fim de 2025, ela subirá para 13,6% –, inovação e tecnologia precisariam avançar junto. A maior parte das soluções não é brasileira. Os aerogeradores que compõem o Sistema Interligado Nacional costumam ser montados no país, mas fabricados por multinacionais baseadas no exterior.

O primeiro desenvolvido em território nacional foi anunciado pela Weg, que projetou e construiu, e pela Engie, que instalou em Santa Catarina, em junho, após anos de pesquisas apoiadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica. “Só se terá mais autonomia com estímulo à pesquisa para inovação em áreas específicas, e programas com chamadas específicas para implementação das tecnologias pelo setor privado. É foco em ciência”, avalia o professor Carlos Frederico Duarte da Rocha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), autor de livro sobre avanço da energia solar no Brasil.

Disputa por tecnologia na energia solar
Essa barreira tecnológica pode ser um dos empecilhos para a continuidade do avanço da energia solar no Brasil, que, com período mais curto de investimentos do que a eólica, hoje representa cerca de 2% da matriz brasileira. Os fornecedores de placas voltaicas são, em sua maior parte, chineses. Há fábricas instaladas no Brasil, mas elas não comportam todo o mercado nacional.

Assim, com a pressão energética na China e por mudanças nas matrizes de diferentes países, o mercado brasileiro está sujeito a essas flutuações. “Muitas fábricas tiveram de fazer rodízios para economizar energia, reduzindo a produção. Ao mesmo tempo, as placas de primeira linha deixaram de ser exportadas. Frequentemente, não sabemos exatamente quais placas podemos garantir a entrega”, relata Rodrigo Freire, cofundador da startup Holu, que conecta consumidores à cadeia para instalação da tecnologia. Democratizar o acesso seria o objetivo final, segundo ele.

O avanço dessa matriz se dá sobretudo nas instalações de pequeno porte, para empresas e residências. Inclusive, com o aumento da conta de luz nos últimos anos, o investimento se tornou viável na comparação, já que um investimento de cerca de R$ 20 mil para instalação em casa para 20 anos de uso se dissolveria. Com isso, segundo dados da Agência Internacional de Energia reunidos pela Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar), o Brasil foi o nono país que mais instalou novos sistemas de energia solar no ano passado, com aumento de 40% na capacidade instalada.

Nesse sentido, surgiram modelos de financiamento só para o segmento. Foi essa a ideia da Solfácil, fintech que dá crédito para instalar o modelo desde 2018, parcelando projetos frequentemente a custos menores do que o da conta de luz. “Diferentemente de outras fontes, essa é a única que o consumidor tem autonomia quanto ao tipo de energia usada, o que o blinda da escassez”, diz Fabio Carrara, fundador da empresa.

Projeto no Senado
Em discussão no Senado após ser aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto, o PL 5829/2019 faz parte dessa movimentação. Ele criaria o marco legal para os micro e minigeradores de energia elétrica, demandando a participação de quem tem os sistemas nos custos associados à eletricidade, a partir de 15% e subindo gradualmente. Consumidores que já têm o sistema (ou que instalem nos 12 meses seguintes) permaneceriam isentos até o fim de 2045; para os novos, há regra de transição de seis anos.

“O projeto ainda poderia ser melhorado, porque as faixas de tempo ainda não atingiram meio termo que seja bom para todo o sistema”, avalia Israel Lacerda, consultor do Senado e pesquisador do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo. O texto foi assinado por entidades do setor, inclusive a Absolar. A expectativa das distribuidoras era que a contribuição chegasse a 62%.

A necessidade do pagamento é justificado no projeto pelos encargos relativos à remuneração dos ativos do serviço de distribuição, da depreciação dos equipamentos da rede e do custo de operação e manutenção do serviço. “Para quem atua no setor, a aprovação do marco gera um senso de urgência que está aquecendo o mercado”, afirma Freire, da Holu.

Apesar de ter se dado desse modo até aqui, essa não é uma solução restrita ao uso particular. No fim de outubro, a estreante Essentia Energia, empresa da gestora Pátria, atuante no setor de renováveis desde 2006, concluiu as obras de sua usina Sol do Sertão, na Bahia, que teve R$ 1,4 bilhão em investimentos e já tem 90% de sua produção nos próximos 20 anos vendida para a Cemig. Em setembro, no sertão cearense, outro parque solar do tamanho de 800 campos de futebol e R$ 950 milhões investidos também passou a funcionar – e distribui energia para o sistema nacional.

Combustível e locomoção na próxima fronteira
Embora se bata na tecla da necessidade de diversificar a matriz elétrica, também se trata, abertamente, de ampliar a capacidade de geração instalada, de modo tanto tanto a lidar com adversidades climáticas quanto a absorver a demanda.

O consumo deve ser crescente, ainda mais considerando que parte da solução para mitigar as emissões advindas dos combustíveis para transporte – uma outra face da matriz energética brasileira – passam por eletrificação. “Como o Brasil investiu por décadas no transporte rodoviário, esse processo é mais complexo de desfazer. Como ele também demanda renda, para substituir frotas, poderia começar a partir das cidades”, afirma Hirdan de Medeiros Costa, professora do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).

Nesse sentido, uma das soluções que, globalmente, tem sido alvo de investimentos e discussões, inclusive na COP26, é o uso do chamado hidrogênio verde. Ele é produzido sem a emissão de carbono ou outros gases de efeito estufa, a partir da quebra da molécula da água por eletricidade de fontes limpas. A corrente elétrica parte a água em hidrogênio e oxigênio; para gerar energia, células combustíveis reúnem os elementos, gerando vapor de água como resíduo.

É uma aposta para transporte de carga, aeronaves e indústrias, já que, mesmo havendo eletricidade limpa, o volume das baterias para armazenagem de carga é um impeditivo. E também é uma aposta como substituto do gás natural e substituindo o carvão na produção de aço, altamente poluente. Porém, o transporte ainda é um problema (por ser muito leve, ele precisa se tornar líquido ou comprimido) e os custos por quilo produzido são muito elevados.

“Não temos toda a tecnologia e os recursos para aplicar em larga escala na sociedade no contexto brasileiro. Só faz sentido apostar alto se isso não significar deixar de desenvolver tecnologias para as fontes que já vemos grandes resultados no país”, explica o professor Carlos Martínez Huitle, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que pesquisa técnicas de geração de energia para produzir hidrogênio verde, completa.

Internacionalmente, há investimentos massivos para que o processo se viabilize. Só na União Europeia, há um plano de investir 60 bilhões de euros até 2030 nesse sentido. No Brasil, há projetos e acordos firmados por multinacionais baseados no Brasil, voltados à exportação. O Ministério de Minas e Energia promete apresentar a Estratégia Nacional do Hidrogênio no início do ano que vem, com novas diretrizes sobre a questão.


Fonte: Jota