Disputa pelo hub financeiro da Ásia

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China quer um novo centro fora da influência americana na região

A escalada de hostilidades entre Hong Kong e o governo central da China tem afugentado diversas operações de empresas em Hong Kong e colocando em risco sua posição de destaque como hub financeiro na Ásia. A decisão da administração dos EUA de remover o status comercial especial de Hong Kong sujeitando as exportações da cidade às mesmas tarifas americanas que o continente, ameaçam seu status de porto preferencial para atividades comerciais e amigável a impostos.

Caso essa perda gradativa de importância se prolongue, um candidato natural a fortalecer sua posição como entreposto preferencial, financeiro e comercial, na Ásia seria a rival Cingapura.

Para criar uma praça financeira local bastará à China apertar o cerco a Hong Kong. Mas a questão principal é que terá de decidir como enfrentar a impossibilidade de controlar ao mesmo tempo a taxa de câmbio, o fluxo de capitais e a política monetária

Cingapura se destaca como um sofisticado centro financeiro e comercial na Ásia - em grande parte por uma legislação tributária e financeira bastante atrativa para os investidores. Ocorre, no entanto, que Cingapura também tem enfrentado problemas na guerra pela manutenção de empregos (em virtude da pandemia, mas não exclusivamente por ela), além do fato de que é límpido e certo que o governo chinês não assistirá inerte ao deslocamento do centro financeiro da Ásia para fora de sua zona de influência.

Para isso, o governo chinês tem vários candidatos, correndo em uma espécie de “prévia” para decidir quem estará apto a disputar, com o apoio do governo chinês, essa posição. A China tem vários candidatos, Pequim, Xangai, Hainan e mesmo Macau.

Mais do que nunca, com o aumento das sanções dos EUA a Hong Kong ficou clara a prioridade da China em deslocar o eixo financeiro da Ásia para algum outro lugar que não esteja sob a influência americana. Qualquer candidato a tomar a posição de Hong Kong não poderá prescindir do apoio do governo central da China. Auxiliado por sua proximidade com Pequim, sob a estrutura de “um país, dois sistemas”, Hong Kong construiu corredores exclusivos para os outrora impenetráveis mercados financeiros onshore chineses.

De acordo com relatório do SWIFT de agosto de 2020, o renminbi (RMB) é a quinta maior moeda utilizada como meio de pagamento internacional, e 3/4 de todos os fluxos de pagamentos offshore em RMB passam por Hong Kong, enquanto Cingapura responde por apenas 3%.

Nos últimos anos, a China tem tomado uma série de iniciativas para internacionalizar seu sistema monetário e aumentar seu peso nas transações comerciais e financeiras globais. Em 2009, a China pela primeira vez emitiu títulos públicos chineses no mercado offshore, com o objetivo e permitir a formação de uma curva de juros. Em 2010 empresas não financeiras chinesas de multinacionais foram autorizadas a emitirem títulos em RMB em Hong Kong. Em 2016 o RMB foi incluído na cesta de moedas que compõe os Direitos Especiais de Saque do FMI. Também em 2016, a China iniciou a comercialização de petróleo na Bolsa de Xangai.

Mas a tarefa de criar um centro financeiro internacional, verdadeiramente competitivo, não depende apenas de hard power - como infraestrutura e disponibilidade de capital - mas também de fatores mais suaves, como o know-how e um ambiente favorável aos negócios - que tendem a ser mais difíceis de replicar.

Um dos principais entraves para a China desenvolver um hub financeiro de nível mundial diz respeito ao forte controle de movimentações financeiras internacionais, além do fato da baixa participação do setor privado, e em especial estrangeiros, no sistema financeiro e no mercado de capitais. Um sistema de instituições financeiras que seja competitivo internacionalmente também tomará forma à medida que Xangai acelere o estabelecimento de um centro global para inovação, comércio, precificação e clearing em RMB. Um dos pilares desse processo é o desenvolvimento de tecnologia financeira, a chamada fintech. Xangai já tem a bolsa mais desenvolvida da China continental, atendendo aos mercados de diversos produtos como títulos, futuros e câmbio.

No Índice de Centros Financeiros Globais de março de 2020, que cobre cinco áreas principais (ambiente de negócios, capital humano, infraestrutura, desenvolvimento do setor financeiro e posição global), Xangai aparece em quarto lugar, a frente de Cingapura e Hong Kong.

Em 2019, o Gabinete de Informação do Governo Popular Municipal de Xangai e diversas outras autoridades chinesas ligadas à regulação financeira e ao mercado de capitais lançaram um plano para transformar Xangai em um centro financeiro internacional. Basicamente, o plano tem os objetivos de aumentar o grau de internalização do mercado financeiro local e sua influência global, atrair mais investidores estrangeiros e melhorar os arranjos para pagamentos e liquidações internacionais em RMB.

Esse processo se coaduna com o projeto chinês de criar um sistema financeiro multilateral e fortalecer o RMB como meio de pagamento global, conforme destacado no 13º Plano Quinquenal chinês. Xangai sem dúvida é um forte candidato a esse posto, mas outras cidades ainda estão no páreo.

Para criar uma praça financeira local a China não precisará de tanto esforço, bastará, se assim o quiser, apertar o cerco a Hong Kong. A questão principal é que, caso deseje criar uma praça financeira global, terá que decidir como enfrentar a impossibilidade de controlar simultaneamente a taxa de câmbio, o fluxo de capitais e a política monetária (o chamado trilema de Mundell-Fleming).

Ainda não está claro como a China irá conciliar esses objetivos. Mas caso tenha sucesso, diversas empresas ocidentais que têm atuação na Ásia, por meio de trading ou outras empresas financeiras, em Cingapura ou Hong Kong, terão de se reposicionar. Ainda é cedo para apostar em quem sairá vencedor dessa disputa, mas é esperado que o próximo Plano Quinquenal no ano que vem encaminhe algumas destas questões.

Luis Adolfo Beckstein é mestre em Economia, especialista em análise econômica em óleo e gás e consultor de investimentos estrangeiros.

Fonte: Valor Econômico