A crise de inadimplemento instaurada na relação jurídica de direito material entre fisco e contribuinte por ocasião do não pagamento de um crédito tributário vencido é o pretexto necessário para o desencadeamento de atos normativos subsequentes — inscrição do débito em dívida ativa e emissão da respectiva certidão — que resultarão no ajuizamento da execução fiscal.
É a partir desse meio processual (o executivo fiscal), cujo objetivo último é a realização do direito material mediante a prática de atos constritivos e expropriatórios do patrimônio do devedor, que se torna possível estabelecer o vínculo de conexidade instrumental entre direito material e direito processual [2] , naquilo que se denominou causalidade circular [3] .
Pela ótica do executado, a presunção juris tantum de certeza, liquidez e exigibilidade do crédito tributário inadimplido (artigo 3º da Lei nº 6.830/80), decorrente que é (a presunção) da natureza do título extrajudicial que a materializa, limita os meios de defesa do devedor, o qual poderá se valer da exceção de pré-executividade e os embargos à execução, através dos quais a pretensão (na acepção de direito material, isto é, o direito de exigir) da Fazenda Pública poderá ser afastado.
Voltando-se a atenção especialmente para a exceção de pré-executividade, observa-se que o manejo dessa via excepcional tem o condão de transmutar a atuação executiva fiscal em atividade tipicamente cognitiva do direito material tributário [4] , cenário ideal para a prolação do que o código de processo civil de 2015 denominou de decisões antecipadas parciais de mérito, principalmente em face da circunstância de não ser incomum que um mesmo título executivo, por comodidade e economia processual, materialize uma pluralidade de fatos tributáveis, aos quais podem ser contrapostas diversas causa de pedir.
O ponto que se põe a debate está relacionado com o regime do recurso cabível contra essa decisão antecipada parcial de mérito que, conquanto tenha o conteúdo definido pelo artigo 487, isto é, trate do mérito da causa, assume, por expressa disposição do artigo 356 do CPC, natureza de típica decisão interlocutória, resultando numa disparidade de tratamento entre as partes litigantes.
Disso decorre, quase que intuitivamente, a seguinte indagação: em homenagem ao artigo 7º, CPC [5] , não seria razoável atribuir ao agravo de instrumento que impugna decisão interlocutória antecipada parcial de mérito o mesmo regime jurídico da apelação?
Em outra oportunidade [6] , embora atendo-se às ações antiexacionais, tratou-se nessa coluna a respeito das decisões antecipadas parciais de mérito, destacando-se, naquela ocasião, que havendo mais de um pedido ou diversidade de causas de pedir na ação submetida à apreciação do Judiciário, o artigo 356 do CPC autoriza que o juiz, mediante decisão interlocutória antecipada parcial, mas com cognição plena e exauriente, resolva o mérito, cuja decisão, na ausência de interposição de recurso (o referido agravo de instrumento), resulta em coisa julgada material (artigo 356, §3º, CPC).
Aplicando esse regramento ao âmbito da execução fiscal, em se tratando de pretensão executiva relativa a mais de um período ou débito executado [7] e arguindo-se na exceção de pré-executividade, por exemplo, prescrição, decadência ou inconstitucionalidade da exação, causas de pedir típicas de mérito, à luz do artigo 487, I e II do CPC, e que afetarão apenas parte do crédito tributário, prosseguindo-se o feito executivo em relação ao restante, o juiz deverá proferir decisão antecipada parcial de mérito, cuja recorribilidade será exercitada por meio do Agravo de Instrumento.
Assim, se a exceção impugna total ou parcialmente os débitos exequendos, mas é acolhida parcialmente ou rejeitada integralmente, o vencido — o executado e, também, o exequente frente ao conteúdo acolhido — sujeitar-se-ão ao regime do recurso de agravo de instrumento, dotado de efeito meramente devolutivo, sem possibilidade de sustentar oralmente suas razões ou de se valer da técnica de julgamento prevista no artigo 942 [8] , CPC, se o acórdão ratificar os termos da decisão agravada (artigo 942, §3º, II [9] , CPC).
Por sua vez, estivéssemos diante de exceção acolhida integralmente, extinguindo o feito executivo, o conteúdo de mérito teria sido veiculado em sentença, oportunizando à Fazenda a interposição de recurso de apelação, dotado de efeito suspensivo automático, que permite sustentação oral e a ampliação da colegialidade quando o resultado do acórdão não for unânime (técnica de julgamento prevista no artigo 942 do CPC), mesmo na hipótese em que o acórdão confirme o conteúdo da decisão recorrida.
Embora o teor da decisão que acolhe integralmente a defesa incidental ofertada para extinguir a execução fiscal — sentença — seja exatamente o mesmo daquela que acolhe parcialmente as alegações (ou integralmente a impugnação parcial) da exceção — decisão antecipada parcial de mérito —, qual seja, o afastamento do direito de exigir (pretensão) da Fazenda Pública, há discrepância entre o regime recursal a que se submete esse tipo decisório, se comparado àquele que é próprio às sentenças de mérito.
Indiscutível a escolha legislativa pela adoção de um duplo critério para distinguir sentença de decisão interlocutória (artigo 203, §§ 1º e 2º, CPC), isto é, a finalidade do ato (se extingue ou não o processo) e o conteúdo do pronunciamento judicial (se contém uma das situações dos artigos 485 e 487), aspecto este, inclusive, confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme fora abordado em outra oportunidade nesta coluna ao (recorribilidade da decisão sobre impugnação ao cumprimento de sentença [10] ).
Contudo, reputamos que, nas hipóteses em que a decisão interlocutória versa sobre o mérito da demanda, ou seja, é dotada de conteúdo do artigo 487, CPC, embora o recurso cabível seja o agravo de instrumento, o regime jurídico recursal a ser observado deve ser o mesmo destinado à apelação.
Isso porque, normativamente, como apontado, há um duplo critério para definir o regime recursal do ato decisório, que diz justamente com a finalidade do ato decisório (extinção ou não do processo, no caso, o executivo fiscal) e o conteúdo do pronunciamento (se de mérito ou não). Entretanto, o regime recursal aplicável a cada tipo decisório, in casu , é injustificadamente distinto, muito embora haja expressa determinação legal de garantir a paridade de tratamento dos meios de defesa (artigo 7º, CPC) e a isonomia entre as partes.
Não negamos que o acolhimento parcial de mérito da exceção (ou a sua improcedência em função do seu conteúdo) ensejará a interposição de agravo de instrumento, mas, porque toca o mérito, o procedimento desse agravo deve ajustar-se à possibilidade de sustentação oral [11] , interposição de recurso adesivo [12] , ampliação da colegialidade, inclusive nas hipóteses em que o resultado do julgamento do recurso mantiver (e não reformar) a decisão de origem (artigo 942, CPC), bem como assegurar o efeito suspensivo automático [13] .
Estamos, assim, reconhecendo a inaplicabilidade, a essa específica situação, do quanto disposto no artigo 356, §2º, CPC, frente à necessidade de preservação das ideias de isonomia, garantida às partes em relação ao exercício de seus direitos, faculdades processuais e meios de defesa, além de resguardar a coerência do microssistema processual.
- Texto oriundo dos debates deflagrados nas aulas do crédito de Direito Processual Tributário, do curso de mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), ministrado pelo professor Rodrigo Dalla Pria
[9] Art. 942. (...)
§ 3º. A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em:
II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito.