OPINIÃO: A limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros em 20 salários

Últimas Notícias
a limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros em 20 salários mínimos vigentes — e não mais sobre a integralidade da folha de salários

Quem é familiarizado com as discussões cotidianas de Direito Tributário e Empresarial certamente já ouviu falar numas das "teses do século" defendidas por juristas perante o Poder Judiciário, em defesa dos contribuintes: a limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros em 20 salários mínimos vigentes — e não mais sobre a integralidade da folha de salários —, cuja norma autorizadora, não revogada por aquela que em 1986 revogou o mesmo limite em relação às contribuições previdenciárias, ainda estaria em plena vigência e com total eficácia. Vejamos, em resumo, a história da tese e sua principal controvérsia.


Em 1981, foi publicada a Lei 6.950/81, que determinou, pela redação do parágrafo único de seu artigo 4º, que o limite máximo da base de cálculo das contribuições parafiscais, arrecadadas por conta de terceiros, deveria se limitar a 20 salários mínimos (vigentes) 
[1].

Apenas para esclarecimento, as contribuições a terceiros são uma das formas pelas quais empresas (em regime de apuração de lucro real ou presumido) contribuem com a concretização de direitos sociais, como educação, saúde, lazer e bem-estar, destinadas predominantemente às entidades que formam o "Sistema S" — Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Social da Indústria (Sesi), Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Serviço Social de Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), Incra e Salário-educação.

Por sua vez, em 1986, foi promulgado o Decreto-Lei 2.318/86, que afastou, pela redação de seu artigo 3º, a limitação imposta pela norma expressa no texto do caput do referido artigo 4º da Lei nº 6.950/81 [2].

A partir daí, não apenas as contribuições previdenciárias, mas as contribuições a terceiros passaram a incidir sobre a totalidade da folha de pagamentos. E, nesse momento, surgiu a principal controvérsia sobre o tema.

O artigo 3º do Decreto-Lei acima refere-se especificamente às contribuições previdenciárias (calculadas sobre a folha de salários), sem mencionar expressamente a revogação da limitação da base de cálculo das contribuições parafiscais às terceiras entidades, prevista no texto do parágrafo único do mesmo artigo 4º.

Devidamente provocados, os órgãos do Poder Judiciário têm, nos últimos anos, decidido a favor dos contribuintes ao formar entendimento de que o Decreto-Lei 2.318/86 teve por objetivo somente afastar a limitação de 20 salários-mínimos das contribuições previdenciárias, não afetando as contribuições destinadas a terceiros.

Tais provocações culminaram no julgamento do REsp nº 1.570.980/SP, sob relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, assim ementada.

"TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DEVIDA A TERCEIROS. LIMITE DE VINTE SALÁRIOS MÍNIMOS. ARTIGO 4O DA LEI 6.950/1981 NÃO REVOGADO PELO ARTIGO 3O DO DL 2.318/1986. INAPLICABILIDADE DO ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO DA FAZENDA NACIONAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Com a entrada em vigor da Lei 6.950/1981, unificou-se a base contributiva das empresas para a Previdência Social e das contribuições parafiscais por conta de terceiros, estabelecendo, em seu artigo 4º, o limite de 20 salários-mínimos para base de cálculo. Sobreveio o Decreto 2.318/1986, que, em seu artigo 3º, alterou esse limite da base contributiva apenas para a Previdência Social, restando mantido em relação às contribuições parafiscais.
2. Ou seja, no que diz respeito às demais contribuições com função parafiscal, fica mantido o limite estabelecido pelo artigo 4º, da Lei no 6.950/1981, e seu parágrafo, já que o Decreto-Lei 2.318/1986 dispunha apenas sobre fontes de custeio da Previdência Social, não havendo como estender a supressão daquele limite também para a base a ser utilizada para o cálculo da contribuição ao Incra e ao salário-educação.
3. Sobre o tema, a Primeira Turma desta Corte Superior já se posicionou no sentido de que a base de cálculo das contribuições parafiscais recolhidas por conta de terceiros fica restrita ao limite máximo de 20 salários-mínimos, nos termos do parágrafo único do artigo 4º da Lei 6.950/1981, o qual não foi revogado pelo artigo 3º do DL 2.318/1986, que disciplina as contribuições sociais devidas pelo empregador diretamente à Previdência Social. Precedente: REsp. 953.742/SC, relator ministro JOSÉ DELGADO, DJe 10.3.2008.
4. Na hipótese dos autos, não tem aplicação, na fixação da verba honorária, os parâmetros estabelecidos no artigo 85 do Código Fux, pois a legislação aplicável para a estipulação dos honorários advocatícios será definida pela data da sentença ou do acórdão que fixou a condenação, devendo ser observada a norma adjetiva vigente no momento de sua publicação.
5. Agravo Interno da FAZENDA NACIONAL a que se nega provimento". (AgInt no REsp 1570980/SP, relator ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/02/2020, DJe 03/03/2020).

Neste momento, sob o Tema 1.079, o Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, determinou a suspensão da tramitação de processos pendentes em todo território nacional sobre o assunto, até a definição do entendimento final da corte superior.

Pois bem. Embora o atual posicionamento do STJ traga profundos benefícios financeiros aos contribuintes, a questão não se encontra encerrada (inclusive, é claro, porque não há trânsito em julgado do leading case nos tribunais superiores).

Em primeiro lugar, a controvérsia apontada gira em torno de uma questão de ordem maior, mais abstrata, acerca da sistemática normativa nacional e das possibilidades de interpretações dos textos legais, a ser resolvida pelo Poder Judiciário: uma vez que o Decreto-lei nº 2.318/86 revogou o caput do artigo 4º da Lei nº 6.950/81, estaria seu parágrafo único automaticamente afetado?

Sem pretender formular uma conclusão, mostraremos dois argumentos opostos.

Alinhadamente ao entendimento hoje dominante nos tribunais regionais e superiores, há quem interprete que a norma decorrente do texto do caput do artigo 4º mencionado possui autonomia em relação à norma expressa logo abaixo, no parágrafo único a ele vinculado.

Isso porque a temática da norma jurídica trazida em uma parte do artigo (o caput) é, nesse caso, qualitativamente distinta da temática da norma jurídica expressa em outra parte do mesmo artigo (o parágrafo único). Assim, haveria uma autonomia orgânica entre as normas, ao passo que não haveria nenhuma relação de subordinação ou de dependência entre tais normas.

Consequentemente, o parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 6.950/81, estaria em vigência, restaria integralmente válido e possuiria plena eficácia.

Há um pressuposto de ordem mais abstrata nessa lógica, qual seja, a compreensão de que cada parte da estrutura do texto normativo (caput, parágrafos, incisos e alíneas) é um enunciado normativo distinto, que possui um certo significado (a ser determinado pela hermenêutica jurídica) em sua singularidade e que, por se referir a um objeto distinto em relação às demais partes que formam o todo do artigo, é autônomo em relação a esses.

Ademais, a Lei 8.212/91, outro ato normativo que veio alterar a norma então vigente, regulamentado a organização da Seguridade Social, trata-se de norma geral destinada apenas às contribuições para a seguridade social. Logo, dada tal especificidade, suas revogações também não se aplicariam às contribuições destinadas aos terceiros.

Resumindo, para tal posição, há duas regras de caráter especial num mesmo artigo: aquela inscrita no caput, específica para a apuração da contribuição previdenciária, e aquela inscrita no parágrafo único, especial para a contribuição parafiscal a terceiros.

Agora, para outros intérpretes [3], haveria uma real relação de subordinação,  dependência, ou mesmo de submissão do parágrafo único ao caput do artigo 4º da Lei 6.950/81.

Tal interpretação tem como fundamento a norma jurídica emanada pelo texto do artigo 11 da Lei Complementar 95/98, segundo o qual a lei deve expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida [4].

Uma vez que a LC 95/98 dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis brasileiras, referida abordagem concentra-se na determinação de função do parágrafo no sistema sintático-gramatical dos artigos: um parágrafo (no caso, único) teria a função de complementar a norma expressa no caput ao qual está relacionado, não possuindo, em relação a ela, qualquer autonomia.

Assim, a norma expressa no parágrafo único do artigo 4º da Lei 6.850/81 não teria vida própria, sendo a hermenêutica mais adequada aquela que considera na interpretação uma compreensão sistêmica do todo textual-normativo.

Então, além do Decreto-lei nº 2.318/86, a já mencionada Lei nº 8.212/91, publicada já dentro da ordem constitucional instaurada CF/88, que veio a regulamentar integralmente a organização da Seguridade Social, também expressamente teria revogado todo o conjunto normativo do artigo 4º da Lei 6.850/81 [5].

Para essa vertente, então, também as contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros não estão sujeitas ao limite de vinte vezes o salário mínimo nacional em vigência.

Vale ressaltar, no entanto, que essa última interpretação carece de explicar a razão do parágrafo único não poder ser interpretado como restritivo ou excepcional. Dado que o próprio Manual de Técnica Legislativa do Senado Federal define o parágrafo como "o complemento aditivo ou restritivo do caput do artigo" [6], se razões há de interpretá-lo como vinculado ao caput, também há de interpretá-lo como restringindo o conteúdo do caput.

A questão constitucional
Em segundo lugar, há uma dimensão desse debate que merece especial atenção e, dada a complexidade, um escrito em separado, fora do escopo deste artigo: a conformidade da norma jurídica de limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros com a Constituição Federal de 1988 
[7].

Mantido o entendimento atual do STJ, a limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros em 20 salários mínimos se conformaria ao princípio da capacidade contributiva, inscrito nos artigos 145, §1°, 150, II, 150, §6°, da Constituição Federal? [8]

O referido princípio constitucional da capacidade contributiva trata-se um padrão decisório deontológico que opera como meio de concretização do valor jurídico da igualdade ou isonomia tributária, impondo a gradatividade da obrigação de pagamento de tributos em proporção ao volume de acumulação de riqueza do contribuinte.

Vamos deixar de lado, por questão de escopo, a discussão sobre se a folha de salários (base de cálculo das contribuições a terceiros sem a limitação) é a régua adequada para avaliar a capacidade contributiva do contribuinte. Há uma ideia comum de que quanto maior o número de trabalhadores de uma empresa (independentemente de serem produtivos de capital ou não), maior seu faturamento, logo maior seu volume de lucro e, consequentemente, maior sua rentabilidade, mas nenhuma das três inferências se traduz em regra geral.

Porém, instituído o teto, toda empresa contribuinte do Sistema S e demais contribuições a terceiros cuja folha de salários exceda o montante de 20 salários mínimos contribuirá com a mesma quantidade de dinheiro às entidades para as quais deve por lei contribuir.

Assim, além de uma brusca queda arrecadatória a um sistema que atende direitos sociais protegidos pela Constituição Federal, haveria uma igualação entre mega, grandes e pequenas empresas que evidentemente contrariaria o princípio da capacidade contributiva por não observar a isonomia tributária, dado que, em razão do tamanho do teto (R$ 26.400,00 em 2023), sujeitos passivos que possuem tendência à maior capacidade de contribuir pagariam proporcionalmente muito menos que sujeitos passivos que possuem tendência à menor capacidade para contribuir. Assim, seria possível afirmar que a limitação prevista na Lei 6.950/1981 é inconstitucional ou não recepcionada pela Constituição de 88.

Alerta aos contribuintes
Por fim, mesmo que o tema esteja sobrestado em território nacional por determinação do STJ, a apreciação da questão perante o Poder Judiciário é direito dos contribuintes.

Nesse sentido, aconselha-se, para as pessoas jurídicas (em regime de lucro real ou presumido) que se veem beneficiadas com a limitação da base de cálculo das contribuições a terceiros em 20 salários mínimos, o ajuizamento de ação judicial para que uma futura modulação dos efeitos da decisão final dos tribunais superiores não prejudique o direito à restituição ou compensação de valores recolhidos a maior no passado.

Porém, recomenda-se cautela: a suspensão da tramitação dos processos e a possibilidade de reversão do entendimento por ora vencedor faz com que seja prudente ser realizado pedido de reconhecimento do direito à compensação dos valores recolhidos a maior (inclusive dos últimos cinco anos anteriores ao ajuizamento), mas mantendo-se a apuração e recolhimento conforme hoje determina a União Federal.

 


[1] Artigo 4º, Lei 6.950/81. "O limite máximo do salário-de-contribuição, previsto no artigo 5º da Lei nº 6.332, de 18 de maio de 1976, é fixado em valor correspondente a 20 vezes o maior salário mínimo vigente no País. Parágrafo único — O limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros".

[2] Artigo 3º, Decreto-Lei 2.318/86. "Para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da Lei nº 6.950, de 4 de novembro de 1981".

[3] Ver, por exemplo, Christiane Pantoja, Base de cálculo de contribuições a Sesi e Senai não é limitada a 20 salários mínimos, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-out-24/pantoja-base-calculo-contribuicoes-sesi-senai

[4] Artigo 11, LC 95/98. "As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: III - para a obtenção de ordem lógica: c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida".

[5] Artigo 105, Lei 8.212/91. "Revogam-se as disposições em contrário".

[6] Encontrado em https://www12.senado.leg.br/institucional/estrutura/SF/OAS/CONLEG/arquivos/manuais/tecnica-legislativa, pág. 13.

[7] Ver, por exemplo, Edvaldo Nilo de Almeida, O debate constitucional sobre o limite das contribuições ao Sistema S, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-19/almeida-debate-limite-contribuicoes-sistema

[8] Artigo 145, §1º, CF/88. "Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".

Artigo 150, CF/88. "Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação  profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;".

FONTE: CONJUR