OPINIÃO: DIREITO DO AGRONEGÓCIO ICMS, não cumulatividade e monofasia: creditamento para o agronegócio

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O Confaz editou o Convênio ICMS nº 199/2022 [1], com vigência a partir de 1/5/2023 (suplementado pelo Convênio ICMS 26/2023), a fim de regulamentar a incidência "monofásica" do ICMS no "óleo diesel" e "GLP",
O Confaz editou o Convênio ICMS nº 199/2022 [1], com vigência a partir de 1/5/2023 (suplementado pelo Convênio ICMS 26/2023), a fim de regulamentar a incidência "monofásica" do ICMS no "óleo diesel" e "GLP", entre outros produtos, e o Convênio ICMS nº 15/2023 [2], também relativo ao regime monofásico, mas ligado às operações com "EAC" e "gasolina C", com vigência a partir de 1/6/2023, ambos com o objetivo de implantar as diretrizes fixadas pela Lei Complementar nº 192/2022, merecendo destaque (ou alerta) a limitação ao crédito do tributo que consta na cláusula 17ª de cada um dos referidos convênios.
 
 
Pois bem. Quem soabrir os referidos convênios verá que o regime monofásico regulamentado pelo Confaz trouxe a reboque a vedação à apropriação de créditos do ICMS sobre as operações antecedentes à saída dos combustíveis, fato este que, obviamente, tem gerado uma enorme insegurança no setor de combustíveis, inclusive para os grandes consumidores do "óleo diesel combustível", especialmente as usinas de cana de açúcar, mas também para os produtores rurais e transportadoras, pelo temor de que o crédito de ICMS desse importante "insumo" seja fustigado pela limitação em questão.
 
Parecia-nos, é bem verdade, que as limitações impostas pelos Convênios ICMS 199/2022 e 15/2023, num primeiro momento, não atingiriam (e não deveriam) o crédito dos contribuintes que utilizam os combustíveis como insumos para as suas saídas tributadas. No entanto, nos termos da autorização contida no inciso I, da Cláusula primeira, do Convênio ICMS nº 26/2023, o que era um temor se transformou em realidade, pois as usinas de cana de açúcar (entre outros contribuintes) foram desautorizadas, expressamente, a tomar o crédito decorrente da aquisição do "óleo diesel combustível", o que é absolutamente inconstitucional, eis que a "não cumulatividade" é uma garantia constitucional, vale dizer, um verdadeiro direito subjetivo do contribuinte, e, obviamente, não pode ser amesquinhada por qualquer norma infraconstitucional, sobretudo um "convênio".
 
Em poucas palavras, a bem empreendida análise da novel regulamentação do Confaz deveria apontar que a vedação ao crédito estaria circunscrita à cadeia de comercialização do produto, vale dizer, ao comércio do combustível e não à utilização dos combustíveis, como insumos, para produção de bens e/ou serviços.
 
Seja como for, sequer a própria LC 192/2022 chegou a anunciar um amesquinhamento e/ou vedação a não cumulatividade do ICMS. Noutras palavras, não há qualquer fundamento para as restrições impostas pelos convênios em questão, especialmente quando o combustível figurar como insumo (essencial) na atividade desenvolvida pelo contribuinte do imposto.
 
Tanto é verdade que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, nos autos da Resposta à Consulta Tributária nº 26.160/2022, já considerando a LC 192/2022 e com espeque nos artigos 61 e 272, ambos do RICMS/SP e item "3.1", da Decisão Normativa CAT-1/2001 [3], expressamente autorizou o crédito do ICMS na aquisição de combustíveis para movimentação de máquinas e veículos indispensáveis à prestação de serviços e/ou produção de bens, nada dizendo sobre as restrições impostas pelos convênios:
 
"RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 26160/2022, de 29 de setembro de 2022.
 
(...)

Interpretação
 
4. Inicialmente, deve ser observado que a LC nº 192/2022, alterada pela Medida Provisória nº 1.118/2022, relativamente a créditos, refere-se à Contribuição para o PIS/PASEP e COFINS vinculados à comercialização de combustíveis, lembrando que ambas as contribuições são de competência federal, portanto, a análise dessas contribuições escapa da competência deste órgão consultivo. A LC nº 192/2022 não trata da manutenção do crédito do ICMS referente à aquisição de combustíveis.
 
5. Isso posto, cabe lembrar que a Consulente ingressou com consulta sobre o mesmo assunto, protocolada com o nº 5278/2015, respondida em 13 de novembro de 2015, cujo conteúdo responde aos quesitos do subitem 3.1, cabendo atualização da data a partir da qual os créditos correspondentes aos materiais de uso e consumo (dentre eles o óleo lubrificante) poderão ser lançados: 1º de janeiro de 2033, nos termos do artigo 33, inciso I da LC nº 87/1996, na redação da LC nº 171/2019.
 
5.1. Nos termos do inciso IV do artigo 517 do Regulamento do ICMS - RICMS/2000, "não produzirá efeito a consulta formulada sobre matéria objeto de consulta anteriormente feita pelo consulente e respondida pela Consultoria Tributária". Assim, relativamente ao subitem 3.1, a consulta é declarada ineficaz.
 
5.2. Convém pontuar, considerando que a Consulente também presta serviços de transporte rodoviário de carga, exceto produtos perigosos e mudanças, no âmbito municipal, o crédito do imposto pago na aquisição de combustível para essa finalidade não pode ser aproveitado.
 
6. Relativamente à questão do subitem 3.2, deve ser destacado que é condição necessária para o aproveitamento do imposto incidente na aquisição de combustíveis que eles sejam consumidos diretamente no acionamento dos veículos utilizados na prestação de serviços de transporte regularmente tributada pelo ICMS, ou, não o sendo, haja expressa autorização para o crédito ser mantido. Dessa forma, se o “consumidor final” mencionado pela Consulente referir-se, por exemplo, à utilização de veículo pela administração da empresa, o imposto relativo ao combustível empregado nesse veículo não pode ser apropriado como crédito.
 
7. Com esses esclarecimentos, consideramos respondidas as perguntas apresentadas pela Consulente" [4].
 
Confirma-se aqui, dessarte, a convicção de que o crédito é absolutamente legítimo, nos termos do artigo 155, § 2º, inciso I, da CF/88, com previsão expressa também na LC 87/96, frisando-se que não há na LC 192/2022 qualquer indício de prejuízo (ou afronta) a não cumulatividade do imposto, sequer em tese.
 
Com tal interpretação, podemos acessar a ideia de que será absolutamente inconstitucional e ilegal a limitação imposta ao contribuinte que emprega o combustível como insumo, o qual poderá manter a apropriação do crédito do imposto, observado o critério quantitativo da regra matriz do crédito de ICMS, que são os valores do ICMS referentes às entradas e as saídas (débito x crédito), salvo melhor juízo, mediante a apropriação do resultado da equação entre a alíquota ad rem versus a quantidade de litros adquiridos e efetivamente utilizados nas atividades do contribuinte, observada a regulamentação de cada uma das unidades da federação.
 
Mas não é só isso! Interessa-nos ainda manter a análise da não cumulatividade, doravante sob outro viés, para lembrar a supressão imposta ao crédito do imposto sobre as operações anteriores às saídas tributadas (monofasicamente) de "óleo diesel", "GLP", "gasolina C" e "EAC", evidentemente ofensiva aos mesmos direitos e garantias fundamentais delineados anteriormente.
 
Sobressai à evidência que, com exceção das operações intermediárias de revenda dos combustíveis, não é franqueado aos convênios, como normas complementares (artigo 100, IV, CTN), criar obstáculos, ou ainda pior, impedir a não cumulatividade, ainda que a operação do contribuinte tributado esteja jungida pelo regime monofásico.
 
Em verdade, a Constituição Federal não impõe a restrição almejada pelos convênios. Pelo contrário, consigna determinação expressa de que, na compensação, será considerado o "montante cobrado nas operações anteriores", a fim de evitar a tributação em cascata.
 
As únicas restrições ao aproveitamento do crédito de imposto pago nas operações anteriores são traçadas pelo próprio Texto Constitucional, no artigo 155, §2º, inciso II.
 
Tais hipóteses, como se vê, são as únicas restrições ao princípio. Vale dizer, somente nos casos acima referidos não terá o contribuinte adquirente o direito de se creditar ou manter o crédito já tomado, relacionado à operação anterior.
 
E se a Constituição não fez outras restrições, não pode o legislador infraconstitucional ou mesmo o poder constituinte derivado, vir a fazê-lo, sob pena de inconstitucionalidade pela exacerbação de sua competência legislativa.
 
In casu, exigir o estorno na proporção das saídas dos combustíveis, ignorando o fato de que houve a necessidade da aquisição de insumos e serviços para a produção dos combustíveis (mantidos no regime plurifásico), ofende o princípio da não cumulatividade, sobretudo pelo fato de decorrer de uma norma complementar (convênio).
 
Não se trata o regime monofásico do imposto, é importante frisar - notadamente a operação do sujeito tributado pelo regime - de uma hipótese de isenção, não incidência ou substituição tributária, mas de tributação única do imposto, com incidência do tributo na entrada dos insumos e na saída do produto final, devendo ser garantido ao produtor o direito de compensar o tributo pago na entrada da mercadoria, com o valor devido por ocasião da saída.
 
Nessa trilha, trazemos à baila uma decisão da ministra Ellen Gracie que ilustra bem a questão prática da não cumulatividade:
 
"O princípio da não cumulatividade do ICMS consiste em impedir que, nas diversas fases da circulação econômica de uma mercadoria, o valor do imposto seja maior que o percentual correspondente à sua alíquota prevista na legislação. O contribuinte deve compensar o tributo pago na entrada da mercadoria com o valor devido por ocasião da saída, incidindo a tributação somente sobre valor adicional ao preço. Na hipótese dos autos, a saída da produção dos agravantes não é tributada pelo ICMS, pois sua incidência é diferida para a próxima etapa do ciclo econômico. Se nada é recolhido na venda da mercadoria, não há que se falar em efeito cumulativo. O atacadista ou industrial, ao comprar a produção dos agravantes, não recolhe o ICMS, portanto não escritura qualquer crédito desse imposto. Se a entrada da mercadoria não é tributada, não há créditos a compensar na saída. Impertinente a invocação do princípio da não cumulatividade para permitir a transferência dos créditos de ICMS, referente à compra de insumos e maquinário, para os compradores da produção agrícola, sob o regime de diferimento" [5].
 
Nessa mesma toada, a fim de demonstrar que a incidência monofásica do ICMS não é prejudicial à não cumulatividade do imposto, José Eduardo Soares de Melo cita os Sacha Calmon Navarro Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi:
 
"A circunstância de a EC 33/01 haver estabelecido a incidência monofásica para as operações com combustíveis e lubrificantes (art. 155, § 2º, XLL, h) não prejudica a aplicação do princípio da não cumulatividade, porque não significa não incidência, tampouco isenção ou substituição tributária; e nem se confunde com a imunidade (que aliás, fica excluída), não podendo desencadear nenhum estorno de crédito no estabelecimento tributado (refinaria ou importadora), conforme observado por Sacha Calmon Navarro Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi.
 
Os citados mestres apresentam exemplos extraídos da literatura francesa e adaptados ao seguinte caso:
 
E concluem que: 'nenhuma exceção foi criada em relação à não cumulatividade. A Emenda Constitucional n.º 33/01, ao contrário, cria apenas uma incidência única, sem alterar, reduzir, modificar o princípio da não cumulatividade' (Sacha Calmo Navarro Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi, 2002, apud, Melo, José Eduardo Soares de, 2020)" [6].
 
Ademais, numa analogia oportuna, não sobeja lembrar que se a cobrança do Difal, com base em convênio, foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal — por ausência de lei complementar para disciplinar o mecanismo de compensação do ICMS (RE 1.287.019 e ADI 5.469) — com muito mais razão é inconstitucional o convênio que extingue a não cumulatividade do imposto, lembrando que sequer a LC 192/2022 poderia fazê-lo [7]. A LC 192/2022, quando muito, poderia alterar o critério temporal da RMIT do crédito de ICMS, mas não desvirtuar o princípio da não cumulatividade.
 
Bem por isso, não pode ser acolhido o argumento simplista, hospedado nas respectivas Cláusulas (décima sétima) dos Convênios ICMS 199/2022 e 15/2023, de que o regime de tributação monofásico é incompatível com o regime geral (débito e crédito) de apuração do ICMS: (1) seja pelo fato de os insumos para fabricação dos combustíveis permanecerem no regime "plurifásico"; (2) seja pelo fato da Constituição Federal exigir o estorno, salvo determinação em contrário da legislação, se e somente se, nos casos de isenção e/ou não-incidência.
 
De tais considerações inferimos que as limitações hospedadas nos Convênios ICMS de 199/2022, 15/2023 e 26/2023 ferem o disposto no artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, (1) tanto na hipótese do contribuinte que adquire o combustível como "insumo" para as suas saídas tributadas pelo imposto, (2) quanto no caso do contribuinte tributado no regime monofásico, uma vez que o sistema "monofásico" trouxe apenas a "incidência única", sem qualquer impacto na não cumulatividade, razão pela qual são inconstitucionais a Cláusula décima sétima, do Convênio ICMS 199/2022, a Cláusula décima sétima, do Convênio ICMS 15/2023 e a Cláusula primeira, inciso I, do Convênio ICMS 26/2023, além de outras eventualmente ofensivas a não cumulatividade do tributo.
 
[1] Confaz. Convênio ICMS 199/2022 : Cláusula décima sétima Em face das características do regime de tributação monofásica, incompatível com o regime geral de apuração do imposto, fica vedada a apropriação de créditos das operações e prestações antecedentes às saídas de Óleo Diesel A, B100, GLP e GLGN qualquer que seja a sua natureza, cabendo ao contribuinte promover o devido estorno na proporção das saídas destes produtos.
 
[2] Confaz. Convênio ICMS 199/2022: Cláusula décima sétima Em face das características do regime de tributação monofásica, incompatível com o regime geral de apuração do imposto, fica vedada a apropriação de créditos das operações e prestações antecedentes às saídas de Gasolina A e EAC qualquer que seja a sua natureza, cabendo ao contribuinte promover o devido estorno na proporção das saídas destes produtos.
 
[3] Ver Decisão Normativa CAT – 1/2001.
 
[4] Sefaz/SP. Resposta à Consulta Tributária nº 26.160/2022.
 
[5] STF, RE n.325.623 AgR. Relator Ellen Gracie. Brasília, j. 30/11/2007.
 
[6] MELO, José Edurado Soares de. ICMS Teoria e Prática, 15 ed. – São Paulo: Livraria do Advogado, 2020.
 
[7] STF, RE 1287019. Recorrente: MADEIRAMADEIRA COMÉRCIO ELETRÔNICO S/A. Recorrido: Distrito Federal. Relator Marco Aurélio. Brasília 30/03/2022.; STF, ADI 5.469. Recorrente: Associação Brasileira do Comércio Eletrônico. Agravado: estado do Rio Grande do Sul. Relator: Dias Toffoli. Brasília 24/2/2021.
 
 
Fábio Pallaretti Calcini é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito-SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.
 
Maicow Leão Fernandes é especialista em Direito Tributário pelo Ibet e em Direito Empresarial pela FGV, professor do Ibet e sócio tributarista do Brasil Salomão e Matthes Advocacia.