TERRITÓRIO ADUANEIRO A reforma tributária: impactos da bala de prata no comércio exterior

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Nos primeiros cem dias do novo governo, um tema recorrente é a reforma tributária, também intitulada pela ministra do Planejamento e Orçamento,
Nos primeiros cem dias do novo governo, um tema recorrente é a reforma tributária, também intitulada pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, como "a única e verdadeira bala de prata do governo na área econômica", ou seja, considerada mais importante do que o arcabouço fiscal no momento em discussão com o Poder Legislativo [1].
 
O foco neste artigo não é a reforma tributária em si, mas as possíveis consequências dessas alterações para o desempenho brasileiro no comércio exterior, considerando as duas propostas de emenda constitucional (PEC) que tramitam no Legislativo, a PEC nº 45, de 3 de abril de 2019, e a PEC nº 110, de 9 de julho de 2019.
 
A PEC nº 45/2019 prevê a criação de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um imposto seletivo. O IBS seria um tributo federal, mas dentro de sua alíquota total está prevista uma alíquota municipal e outra estadual. Essas alíquotas não iriam variar pelo tipo de bem ou serviço e haveria partilha entre os entes, de acordo com o percentual de cada um. O IBS substituiria cinco tributos: PIS/Pasep, Cofins, ICMS, ISS e IPI. Não se permitiriam benefícios fiscais e a tributação dos serviços seria no mesmo nível daquela das mercadorias.
 
 
Assim, essa proposta poderia gerar efeitos negativos para a empregabilidade, tendo em conta que o setor de serviços representa uma parcela grande e crescente dos empregos. Ademais, não resolveria a forte regressividade do sistema tributário brasileiro, ao contrário, tenderia a acirrá-la com alíquotas unificadas e sem possibilidade de benefícios ou isenções tributárias. Por outro lado, essa PEC abriga um mecanismo, ainda que tímido, na tentativa de amenizar a falta de equidade do sistema: a devolução do IBS pago pela população de baixa renda sobre os produtos da cesta básica.
 
A PEC nº 110/2019 também traz um imposto sobre bens e serviços (IBS) e um imposto seletivo. O IBS seria um imposto estadual com regras de partilha previstas na Constituição Federal (CF). Esse imposto substituiria nove tributos: ICMS, IPI, PIS, Pasep, Cofins, ISS, Cide/Combustíveis, Salário-Educação e IOF. Seriam permitidos benefícios fiscais para determinados bens ou setores, como alimentos, transporte público, medicamentos, ativo imobilizado, saneamento básico, educação infantil e educação.
 
A reforma veiculada pela PEC nº 110/2019 também não resolveria o sério problema da regressividade no Brasil, contudo prevê a possibilidade de alíquotas mais baixas para produtos ou serviços essenciais e também apresenta mais pontos com potencial de trazer algum equilíbrio: a devolução do IBS pago pela população de baixa renda, o ITCMD passaria para a União e a previsão expressa de IPVA para aeronaves e embarcações.
 
Colacionadas as principais características das duas propostas de reforma tributária, passemos a refletir sobre as consequências dessas mudanças para o comércio exterior brasileiro.
 
Cabe ressaltar que ambas as PEC abrigam a proposta de instituir um imposto sobre a produção e consumo, nos moldes do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), um sistema bem mais simples que o brasileiro atual e adotado em muitos países, inclusive em nossos vizinhos do Mercosul.
 
Examinemos primeiramente a situação na importação. Há uma carga tributária considerável e são diversos os tributos exigidos. Alguns dos tributos foram concebidos para incidir especificamente sobre o comércio internacional; outros são os que normalmente oneram a produção interna e são replicados na importação.
 
Os primeiros, denominamos de tributos aduaneiros, englobam o imposto sobre a importação e também a taxa cobrada pela utilização do sistema de comércio exterior. Como tributos internos replicados na importação, ou niveladores, a lista é maior: IPI, ICMS, contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, ISS. Incidem ainda, na importação pelo modal aquaviário, o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) e a taxa mercante [2].
 
Interessam a esta reflexão os tributos niveladores, pois foram concebidos para, com fulcro no princípio do tratamento nacional, onerar os bens importados com a mesma carga de tributos internos que são cobrados sobre os bens nacionais similares. Como consequência, a simplificação dos tributos que incidem internamente na produção e consumo terá impacto direto e imediato na importação.
 
Portanto, na importação, será mais simples o recolhimento dos tributos niveladores, será afastada a concorrência fiscal predatória entre os entes da federação e ainda será mais simples a utilização nas operações internas subsequentes dos créditos dos tributos pagos, inclusive no caso de importação de serviços [3]. Ou seja, a reforma tributária, com a adoção de um IBS (semelhante ao IVA) deve apresentar um caráter de simplificação e celeridade que diminuirá os custos dos importadores e aumentará a competitividade dos bens e serviços importados.
 
Na exportação, por sua vez, o impacto tende a ser muito mais significativo. A Constituição prevê não incidência de ICMS [4], IPI [5] e das contribuições sociais e Cide [6] na exportação. Contudo, essas imunidades não ostentam a eficácia desejada porque se limitam à etapa de venda ao importador estrangeiro das mercadorias. Desse modo, a cadeia produtiva dos produtos exportados é originalmente onerada, e o exportador fica sujeito a procedimentos burocráticos e, muitas vezes, improfícuos para recuperar o valor pago. Além disso, a desoneração não atinge outros tributos incidentes na cadeia produtiva, especialmente o ISS.
 
Nesse ponto, a recuperação de créditos de ICMS, imposto que onera fortemente as mercadorias produzidas no Brasil, tem se revelado uma novela de trama complexa e trágica, que merece nossa atenção.
 
O crédito de ICMS na exportação depende da comprovação de sua origem e da demonstração da efetividade da exportação, com a remessa dos produtos para o exterior. Muitas vezes, o exportador não possui atividades internas para utilizar ele mesmo os créditos. Apesar da Lei Kandir, no seu artigo 25, § 1º, II, prever a possibilidade de transferência desse crédito para terceiros, a transferência, na prática, tem sido protelada ou mesmo inviabilizada pelos estados. O principal argumento dos estados é a falta de repasse da União das perdas de arrecadação decorrentes da exportação de mercadorias.
 
A determinação de que a União repasse aos estados os valores pertinentes às perdas de arrecadação do ICMS na exportação constava do artigo 91 dos ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional nº 42/2002 e revogado pela Emenda Constitucional nº 109/2021. O assunto passou a ser regulado pela Lei Complementar nº 176/2020, a qual prevê que a União compense os repasses não efetuados na vigência do artigo 91 dos ADCT. Assim, a União pagará aos estados entre 2020 e 2037 a importância de R$ 58 bilhões; a partir de 2037, o restante, no valor de R$ 4 bilhões, ficou condicionado à realização do leilão de petróleo dos blocos de Atapu e Sépia, na Bacia de Santos; e então deixaria de ser devida a reposição.
 
Parece que se resolveu o passado, mas o futuro continua muito incerto. Nesse contexto, a expectativa dos exportadores é que as empresas continuarão a acumular créditos de ICMS relativos à exportação e continuarão a enfrentar burocracias e dificuldades na recuperação desses valores.
 
Por outro lado, diante da dificuldade de desonerar as exportações, no Brasil, de maneira peculiar, criamos outras formas, ainda mais sinuosas e burocráticas, na tentativa de resolver ou contornar esse problema: passamos a desvirtuar os regimes aduaneiros especiais, principalmente o drawback, com o intento de desonerar, ainda que parcialmente, a cadeia produtiva de produtos exportados [7].
 
Dessarte, temos um cenário de complexidade, burocracia e pouca eficácia na desoneração das exportação. Com isso, nossa competitividade internacional se compromete substancialmente. Ou seja, a solução efetiva para a dificuldade de desonerar as exportações parece se concentrar realmente em uma reforma tributária que, como as propostas constantes das duas PEC analisadas, traga um imposto sobre o consumo com característica de IVA. Com isso, não ganharão apenas os exportadores, ganhará muito o país em termos de competitividade e inserção no comércio internacional.
 
Importante lembrar que há uma tendência mundial de abertura comercial, na qual nosso país se perfilha. Nesse sentido, estamos na porta de entrada da OCDE, temos uma acordo de abertura comercial com a União Europeia sobre a mesa, provavelmente, no governo atual haverá uma maior aproximação com nossos importantes parceiros do Mercosul e ainda se vislumbra um estreitamento das relações comerciais com a China.
 
Se continuarmos com nossa competitividade comprometida em função de um sistema tributário excessivamente burocrático, complexo e ineficaz para desonerar as exportações, corremos o risco de comprometer nossa produção industrial e fortalecer nossa exportação, mas não de produtos e serviços, e sim de postos de trabalho.
 
A reforma tributária, como está delineada nas PEC analisadas, ainda que não resolva nossos antigos e profundos problemas de desigualdade e progressividade, alça-nos a um melhor nível de competitividade e permite que tenhamos como objetivo o crescimento de nossa parcela no comércio internacional e que nos distanciemos dos aterrorizantes fantasmas da desindustrialização e da exportação de empregos. Que venha a bala de prata!
 
 
[1] Conforme matéria da Agência Câmara de Notícias "Simone Tebet diz na Câmara que a reforma tributária é a 'bala de prata' do governo". Fonte: Agência Câmara de Notícias (Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/950785-simone-tebet-diz-na-camara-que-a-reforma-tributaria-e-a-bala-de-prata-do-governo/. Acesso em: 8 abr. 2023)
 
[2] Sobre a tributação da importação sugerimos consulta ao artigo "Carnaval Tributário na Aduana" (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-01/territorio-aduaneiro-carnaval-tributario-aduana-abre-alas-eu-quero-passar/. Acesso em: 8 abr. 2023) e também ao artigo "ICMS-Importação: enquanto tem bambu, tem flecha" (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-13/territorio-aduaneiro-icms-importacao-enquanto-bambu-flecha. Acesso em: 8 abr. 2023). Para aqueles que desejem se aprofundar no assunto, recomenda-se a leitura da obra "Tributos sobre o Comércio Exterior" ( MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012).
 
[3] O ISS é um imposto cumulativo, não há previsão de crédito, mas, com o IBS, a tributação dos serviços passa a ser não cumulativa e com direito a crédito, inclusive na importação.
 
[4] Cf. art. 155, § 2º, XII, "e", da CF.
 
[5] Cf. art. 153, § 3º, III, da CF.
 
[6] Cf. art. 149, § 2º, I, da CF.
 
[7] Nesse sentido, nossas observações em artigo anterior:
 
"Creio que o leitor já pôde observar que o regime de drawback também se aplica aos tributos incidentes na aquisição de insumos nacionais. Isso é mais uma peculiaridade brasileira e ocorre porque o nosso processo de desoneração das exportações não atinge o grau de eficiência de outros sistemas tributários mais simples. Assim, caso o drawback se limitasse à importação e não houvesse um tratamento equivalente para os insumos nacionais, caracterizar-se-ia um grande estímulo à importação de insumos em prejuízo da produção nacional. Para corrigir essa distorção, foi criado no Brasil o 'drawback integrado', que permite que o industrial adquira também (ou somente) insumos internos, sem pagamento dos tributos internos incidentes sobre essa operação, para produzir bens a serem exportados” ("Regime de drawback em tempos de Covid-19 e guerra na Ucrânia". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-17/territorio-aduaneiro-regime-drawback-tempos-covid-19-guerra-ucrania . Acesso em: 8 abr. 2023)
 
Para aprofundamento na questão do papel dos regimes aduaneiros especiais no Brasil, recomenda-se a leitura de: MEIRA, Liziane Angelotti. Regime Aduaneiro Especial de drawback. In: Gisele Barra Bossa. (Org.). Eficiência Probatória e a Atual Jurisprudência do CARF, 2020, p. 715/743; e MEIRA, Liziane Angelotti. Regimes Aduaneiros Especiais. São Paulo: IOB, 2002
 
 
Liziane Angelotti Meira é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.