Carf: créditos extemporâneos, formalismo e direito material

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Aspectos formais são negligenciados em casos de valor mais expressivo

Estava em uma entrevista de estágio quando escutei o nome CARF pela primeira vez: “Você vai ver que o bom do CARF é que ele não é tão formalista e as discussões são focadas no mérito das questões tributárias e nas provas”. Nove anos depois, agora na posição de entrevistador, tenho minhas dúvidas se explicaria o CARF dessa forma para alguém que se candidatasse a uma vaga de estágio.

O crescente apego formalista do órgão pode ser notado em diferentes discussões: necessidade de retificação das obrigações acessórias para aproveitamento dos créditos extemporâneos de PIS e Cofins; o voto de qualidade implica o desempate ao contribuinte somente em créditos tributários cobrados por meio de autos de infrações, mas as cobranças formalizadas por despachos decisórios não têm o mesmo destino; e provas apresentadas em momento posterior à impugnação muitas vezes não são aceitas com base em um apego processualista formal.

Esses são apenas alguns exemplos onde questões formais prevalecem sobre os direitos materiais em discussão e as provas apresentadas para suportá-los.
Contraditoriamente, aspectos formais acabam sendo negligenciados em casos de valor mais expressivo, geralmente envolvendo planejamentos tributários, reestruturações societárias e formação de ágio. Nesses julgados, o conselho detém-se sobre o que acredita ser a “substância econômica” das operações, independentemente das formas jurídicas adotadas e da existência de previsão legislativa de normas gerais ou específicas antielisivas. Acossado entre forma ou substância, o CARF condena-se à eterna repetição do adágio: hard cases make bad law.

Esse dilema é nítido na discussão sobre a possibilidade de apropriação dos chamados créditos extemporâneos de PIS e Cofins. O artigo 3º, § 4º, das Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003 autoriza os contribuintes a se aproveitarem de créditos não utilizados dentro do próprio mês em que foram gerados. É comum contribuintes não se apropriarem de créditos das contribuições de maneira temporânea, dentro do próprio mês em que incorridas as despesas, pois os critérios de avaliação sobre a possibilidade ou não de creditamento variam ao longo dos anos, tendo em vista as mudanças jurisprudenciais sobre o tema, a mensuração do custo benefício e dos riscos associados ao creditamento. Vale frisar que somente em 2018, 16 anos após a introdução do conceito no ordenamento jurídico brasileiro, com o julgamento do REsp nº 1.221.170/PR pelo STJ, os contornos do conceito de insumo foram definidos sob a sistemática dos recursos repetitivos. No entanto, mesmo assim, o conceito não é observado pelas Autoridades Fiscais no curso de procedimentos de fiscalização. Esse cenário de incertezas, riscos e custos acaba postergando a decisão dos contribuintes sobre tomar ou não os créditos.

Ao se deparar com despesas incorridas que poderiam ter gerado créditos no passado, os contribuintes têm duas opções: (i) retificar suas obrigações acessórias e reconhecer os créditos em cada um dos períodos retificados; ou (ii) não retificar as obrigações acessórias e reconhecer os créditos de maneira extemporânea no mês corrente. A segunda opção muitas vezes é adotada diante da inexistência de vedação legal e dos altos custos e riscos operacionais que seriam gerados para retificação das obrigações acessórias dos últimos anos. Para sua aceitação pelas Autoridades Fiscais, bastaria ao contribuinte comprovar que não utilizou os créditos em duplicidade – no mês em que as despesas foram originalmente incorridas e naquele em que os créditos foram reconhecidos –, uma questão eminentemente probatória.

As Autoridades Fiscais, contudo, não têm admitido o aproveitamento de créditos extemporâneos e glosado aqueles apropriados sem a retificação das obrigações acessórias. O entendimento do Fisco segue o racional estabelecido na Solução de Consulta Cosit nº 355/2017 (recentemente reproduzido na Solução de Consulta Cosit nº 54/2021): como as Instruções Normativas que regem DACON, DCTF e EFD-Contribuições demandam a retificação dessas obrigações acessórias para indicação de créditos utilizados, o contribuinte teria a obrigação de retificá-las caso quisesse apurar os créditos em questão. Ou seja, o que deveria ser uma questão probatória é tratada como requisito material de aproveitamento do direito creditório.

O CARF e sua CSRF analisaram o tema de maneira não consistente nos últimos anos, ora reconhecendo a desnecessidade de retificação das obrigações acessórias, ora exigindo sua retificação. Em determinados períodos, a depender da composição das Turmas Julgadoras, privilegia-se o aspecto formal (retificação) em detrimento do direito material encarnado pela prova da existência e disponibilidade do crédito extemporâneo.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, a 3ª Turma da CSRF, por meio do acórdão nº 9303-011.146, reconheceu, por maioria de votos, que a retificação das obrigações acessórias era pressuposto para o reconhecimento dos créditos extemporâneos, tendo negado provimento ao Recurso Especial do contribuinte diante da não apresentação dos DACON e das DCTF retificadas contendo os créditos utilizados de maneira extemporânea. A linha argumentativa utilizada pelo Relator e acatada pela maioria da Turma fundou-se na existência de uma obrigação infralegal de retificação das obrigações acessórias.

A mesma 3ª Turma da CSRF, sob uma composição ligeiramente diversa, havia decidido exatamente o contrário em março de 2018, no acórdão nº 9303-006.248, onde reconheceu a possibilidade de aproveitamento dos créditos extemporâneos sem a necessidade de retificação das obrigações acessórias – a única consequência seria a imposição de penalidades relacionadas a erros contidos em obrigações acessórias, mas não a impossibilidade de utilização dos créditos.

Vê-se a contradição e inconstância do entendimento da CSRF dentro de um curto espaço de tempo, com decisões recentes privilegiando, por maioria de votos, a interpretação de que a retificação das obrigações acessórias seria necessária. As decisões da CSRF indicariam a cristalização de uma tendência formalista, pela obrigatoriedade de retificação das obrigações acessórias?

Nos parece que não. Em primeiro lugar, a tendência formalista decorre, nos últimos anos, de uma crise identitária, única e exclusivamente de variações na composição da 3ª Turma da CSRF, não existindo consenso suficiente para que a retificação torne-se um critério material incontornável – até porque não há base legal para tanto. Em segundo lugar, os acórdãos da CSRF não costumam deter-se sobre a existência de provas de que o contribuinte não se aproveitou dos créditos extemporâneos em duplicidade. Isto é, os julgados não levam em consideração a demonstração documental de que o contribuinte não se apropriou do crédito no período em que a despesa foi originalmente incorrida e que o utilizou somente a partir do momento em que passou a reconhecê-lo extemporaneamente, ignorando a disponibilidade dos créditos. A tendência formalista parece derivar de uma confusão entre o que seria matéria de prova e o que seria pressuposto material para aproveitamento dos créditos. A CSRF acaba por tomar como condição material para utilização dos créditos o que seria apenas um dos meios de prova: a retificação das obrigações acessórias.

Com efeito, a retificação, desde que acompanhada de documentação hábil e idônea, nada mais é do que uma maneira de provar a existência dos créditos, podendo o contribuinte valer-se de outros meios para tanto; em geral, levantamentos internos ou laudos produzidos por peritos e auditores externos são documentos suficientes.

Em face da inexistência de obrigação legal e da demonstração de que os créditos não foram aproveitados em duplicidade, a tendência formalista deve arrefecer quando a CSRF passar a se deparar com casos onde o contribuinte efetivamente demonstre a disponibilidade do crédito extemporâneo. Apesar de existirem julgados desfavoráveis aos contribuintes, as Câmaras Baixas do CARF têm enfrentado essa discussão e tratado a retificação não como um requisito material, mas como ela efetivamente deve ser tratada, matéria probatória (vide acórdãos nº 3301-008.484, julgado em 25/08/2020; e nº 3201-006.671, julgado em 17/03/2020).

A manutenção de uma posição formalista sobre o tema pela CSRF seria perigosa, até porque, no limite, serviria de precedente para negar créditos em todos os casos envolvendo erros cometidos no preenchimento das obrigações acessórias, o que invalidaria a histórica jurisprudência do CARF sobre o tema, que releva esses equívocos se o direito creditório for demonstrado documentalmente, privilegiando o direito material.

O tema deve ser acompanhado pelos contribuintes nos próximos meses, mas acreditamos que a 3ª Turma da CSRF se alinhará com a tradicional jurisprudência do CARF sobre a desnecessidade de retificação das obrigações acessórias para reconhecimento dos créditos, cedendo às suas pretensões formalistas e admitindo a tomada dos créditos extemporâneos nos casos em que os contribuintes demonstrarem sua efetividade, disponibilidade e não utilização dos créditos em duplicidade.

A resolução do tensionamento entre forma e substância na discussão sobre os créditos extemporâneos é salutar para que o CARF continue sua vocação de tribunal administrativo preocupado com a efetividade do direito material tributário – o que escutei na primeira vez em que ouvi seu nome.


Fonte: Jota