LGPD pode pressionar órgãos tributários no uso de dados dos contribuintes

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Especialistas debatem como dados sensíveis podem ser usados sem prejudicar a transparência dos órgãos públicos

Órgãos da administração tributária, como a Receita Federal e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), podem ser pressionados com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), segundo advogados, em caso de compartilhamento ou tratamento indevido de dados pessoais de contribuintes. Dados sensíveis, como informações de doenças e outros dados compartilhados com desvio de finalidade, podem gerar contestações de pessoas físicas e jurídicas contra a administração pública, na visão de especialistas.

Segundo advogados entrevistados pelo JOTA, o compartilhamento de informações e o cruzamento de dados com a Receita Federal e o Carf, por exemplo, podem ser contestados, principalmente quando envolverem uma quantidade “desproporcional” de dados, que podem ser utilizados para outros fins. Por outro lado, não se pode perder de vista a necessidade de transparência dos órgãos públicos.

No Carf, por exemplo, a maior preocupação dos advogados gira em torno de processos que envolvam dados sensíveis de saúde do contribuinte envolvido. O tribunal julga, entre outros, casos sobre a dedução de gastos relacionados à saúde no Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF).

Em setembro de 2020, por exemplo, a 2ª Turma da Câmara Superior do Carf proibiu que uma mulher deduzisse do IRPF os gastos com home care de um dependente, que funciona como um atendimento hospitalar na casa do paciente (Processo 11610.001703/2011-54). No acórdão do caso, o órgão menciona a doença do dependente, o nome do paciente e o estágio em que a doença se encontrava.

“[O paciente] encontrava-­se no ano calendário de 2007 acometido pelo Mal de Alzheimer, em estágio avançadíssimo, demandando assistência de enfermagem intensiva e permanente 24 (vinte e quatro) horas por dia”, assevera o acórdão.

O documento ainda indica que em função da doença foram contratadas duas profissionais para prestar serviços de enfermagem. O nome das profissionais também é revelado.

Em outro processo, também julgado pela 2ª Turma da Câmara Superior, em novembro de 2020, ficou decidido que um contribuinte portador de doença grave poderia ter o resgate previdenciário isento de IRPF. Neste caso, o órgão não especificou o nome da doença do contribuinte, somente a indicou como “moléstia grave”. (Processo 10073.003082/2008-18).

Na Receita Federal, o entendimento é que o sigilo fiscal já protege os dados obtidos de contribuintes e de terceiros. Atualmente, diversas declarações com dados dos contribuintes são entregues ao órgão. Essas informações vão desde operações com cartão de crédito a declarações de serviços médicos.

A LGPD classifica dados sensíveis como informações sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual e dado genético ou biométrico.

Esse tipo de informação só pode ser tratada, sem consentimento do titular, nas hipóteses de tratamento compartilhado necessário à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos; realização de estudos por órgão de pesquisa e exercício regular de direitos, inclusive em contrato, processo judicial, administrativo e arbitral.

A lei também prevê que o compartilhamento de informações sensíveis com objetivo de obter vantagem econômica, compartilhamento de informações sem boa-fé e o uso de dados de forma não adequada às finalidades de seu tratamento podem gerar punição por parte da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Precauções
De acordo com Danilo Doneda, membro do conselho diretor da International Association of Privacy Professionals (IAPP), a princípio, para as atividades de fiscalização, não existiria impacto relevante da LGPD, pois são atividades que estão “de acordo com o interesse público e com a finalidade do órgão”.

Entretanto, Doneda destaca que, eventualmente, podem surgir situações nas quais se contesta se a Receita Federal “estaria tendo acesso a um volume muito grande e desproporcional de informações. Se estaria facilitando, de alguma forma, a sua utilização para outros fins ou para cruzamentos com outros objetivos”, afirma.

Em entrevista ao JOTA, um auditor da Receita Federal discorda que a LGPD possa impactar negativamente a atividade do órgão. “Os dados dos contribuintes já são, desde a ordem constitucional anterior, protegidos pelo ordenamento com o manto do sigilo fiscal”, diz.

Segundo Breno Kingma, sócio do escritório Vieira Rezende, a LGPD afeta o direito tributário em duas principais frentes. De acordo com o advogado, contribuintes podem se negar a apresentar e compartilhar dados a fiscalizações que “não justifiquem a pertinência daquela exigência”, explica.

“A administração fazendária terá que garantir ainda mais o sigilo do contribuinte, sob pena de responsabilização, inclusive pessoal do agente, e indenização”, afirma Kingma.

Além disso, explica o advogado, a LGPD traz em seu texto a necessidade de justificativa sobre o porquê daquela base de dados ser solicitada. “O contribuinte ganha um forte instrumento para questionar obrigações acessórias que peçam dados alheios ao interesse da fiscalização”, afirmou.

No âmbito do Carf, por exemplo, o advogado acredita que empresas poderão exigir que processos administrativos garantam o sigilo de dados sensíveis e estratégicos, inclusive por ocasião do julgamento e prolação do acórdão.

“Muitas vezes os acórdãos dos processos, disponibilizados a todos, trazem dados estratégicos, sigilosos ou sensíveis dos contribuintes. O desafio será harmonizar o sigilo fiscal prestigiado pela LGPD com a transparência necessária aos atos públicos”, afirma o advogado.

Fonte: Jota