A decisão do STF que admitiu constitucionalização superveniente de norma do ICMS

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Como o Supremo atuou em sentido contrário à aplicação da segurança jurídica

Em outubro, transitou em julgado a decisão do Recurso Extraordinário nº 1.221.330, que analisou a constitucionalidade de norma estadual (Lei Estadual nº 11.001/2001 de São Paulo). Essa norma permitia a cobrança do ICMS em importações realizadas por contribuintes não habituais e tinha sido publicada antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 114/02. Referida Lei Complementar é a norma que regulou essa cobrança do ICMS, autorizada pela Emenda Constitucional nº 33/01.

Antes do advento da citada emenda, a Carta Maior não permitia a incidência do ICMS na situação acima mencionada. Surgiu a necessidade de editar Lei Complementar em respeito ao fluxo de positivação ditado pela Constituição Federal no âmbito tributário: a Constituição autoriza a incidência do imposto, em seguida Lei Complementar regulamenta suas diretrizes e, por fim, norma local estabelece a cobrança naquela unidade da federação. Assim, a Lei Complementar nº 114/02 surgiu para fundamentar a validade das leis locais que estabelecessem a cobrança do ICMS na hipótese em tela.

A constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 33/01 foi objeto de análise pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 474.267 e 439.796, em 07/11/2013. Naquela ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, proferiu seu voto pela constitucionalidade da emenda, mas votou pelo não cabimento dos recursos especificamente em relação à discussão sobre a ausência de Lei Complementar que tratasse da matéria, como condição de concretude da competência tributária sob análise, por entender tratar-se de questão infraconstitucional.

Na sequência, o ministro Dias Toffoli apresentou seu voto conhecendo dos recursos em relação à constitucionalidade da nova hipótese de incidência e, também, à necessidade de Lei Complementar dispondo sobre a nova modalidade de tributação, como condição para a cobrança do ICMS discutido. E, embora reconhecesse a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 33/01, o ministro entendeu que as cobranças de ICMS, objeto dos recursos em julgamento, não poderiam ser mantidas, pois baseadas em normas editadas antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 114/02, considerando, ainda, que a Lei Complementar nº 87/96 não tratava dessa nova hipótese tributária.

Em seguida, o ministro Joaquim Barbosa modificou seu voto para acatar os argumentos trazidos pelo ministro Dias Toffoli, conhecendo os recursos quanto à necessidade de Lei Complementar Nacional, dando concretude à incidência tributária prevista na Emenda Constitucional e julgando inconstitucionais as cobranças com base em normas editadas antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 114/02, verbis:

“Nesses casos, entendo aplicável a orientação firmada por esta Suprema Corte no RE 346.084 e no RE 390.840, que afasta o fenômeno da ‘constitucionalização superveniente’ de nosso sistema jurídico. Para ser constitucionalmente válida a incidência do ICMS sobre operações de importação de bens, irrelevante a qualificação jurídica do adquirente, as modificações no critério material, na base de cálculo e no sujeito passivo da regra-matriz devem ter sido realizadas em lei posterior à EC 33/2001 e à LC 114/2002 (…)”(destacamos).

Logo, o Plenário da Corte Constitucional, em decisão unânime com repercussão geral, tratou da necessidade de Lei Complementar Nacional para fundamentar a cobrança, pelos estados, do ICMS em importações realizadas por contribuintes não habituais, e reconheceu expressamente que somente seriam válidas as incidências baseadas em normas editadas após a Emenda Constitucional nº 33/01, mas também posteriores à Lei Complementar nº 114/02, por não ser válida a constitucionalização superveniente de norma nascida sem fundamento de validade.

Em 2020, o tema voltou a ser discutido pela Corte (Recurso Extraordinário nº 1.221.330), porque as turmas do Tribunal proferiam decisões divergentes a respeito do tema. A Primeira Turma seguia aplicando a orientação então firmada, de que, para promover a cobrança do ICMS em tela, as unidades da federação teriam de editar norma posterior não apenas à Emenda Constitucional nº 33/01, mas também à Lei Complementar nº 114/02.

A Segunda Turma, a partir de voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes (Recurso Extraordinário nº 917.950), abandonou o que foi decidido pelo Plenário e passou a tratar a Lei Complementar nº 114/02 como “mera condição de eficácia” para normas publicadas antes de sua vigência, mantendo a eficácia destas suspensa até o advento da citada Lei Complementar. Tudo sob o fundamento de que negar validade a estas normas significaria abrir espaço para diversas repetições de indébitos, e desfalque do erário.

O ministro Dias Toffoli mudou seu posicionamento, afirmando que no julgamento de 2013 não estaria claro se haveria vício de inconstitucionalidade nas normas publicadas após a edição da Emenda, e antes da publicação da Lei Complementar nº 114/02. Em Embargos de Divergência contra a decisão em comento – baseados justamente nos acórdãos proferidos em 2013 – o ministro-relator Alexandre de Moraes não conheceu do recurso por julgar que tais decisões não teriam correspondência com o caso então analisado, pois a questão da eficácia das normas não teria sido objeto de discussão. Admitiu-se, assim, a constitucionalização superveniente de norma nascida inválida, alegando tratar-se de mera suspensão de sua eficácia – sob o fundamento equivocado de que a questão não fora abordada anteriormente.

Assim, inobstante a clareza do posicionamento da Corte firmado em 2013, o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes no caso julgado em 2020 prevaleceu, baseando-se na incorreta alegação acima mencionada (adotada pela Segunda Turma).

O ministro Luiz Fux, relator original do caso recente, reconheceu a repercussão geral do tema — dada a divergência surgida entre as Turmas — e adotou em seu voto os fundamentos de decidir já aplicados pelo Tribunal: a necessidade de observância do fluxo de positivação da norma e a “farta jurisprudência desta Corte que condena a possibilidade de ‘constitucionalização’ de medida nascida nula”.

O ministro Roberto Barroso, em seu voto, afirmou que a tese consolidada em 2013 sobre o tema “não pode ser lida de forma desvinculada das razões de decidir apresentadas pela Corte no caso em que foi fixada”. Ressaltou, corretamente, que a decisão de dar “eficácia suspensa” à norma, que nasceu sem fundamento de validade, é uma incorreta constitucionalização superveniente. Aponta o equívoco destas alegações, finalizando:

“O Plenário afirmou haver um fluxo normativo a ser respeitado para que a incidência do imposto seja constitucional: EC 33/2001, LC 114/2002 e lei estadual. No presente caso, resta claro que o Legislativo estadual desrespeitou esse fluxo quando da edição da Lei no 11.001/2001. Considerando que o julgamento do RE 439.796 foi finalizado pelo Plenário em 06.11.2013, com acórdão publicado em 17.03.2014, entendo que o Estado recorrente teve tempo o suficiente para editar nova legislação estadual, de modo que não me comovo com o argumento de que o ente não poderá cobrar o imposto por ausência de lei instituidora”.

Os Embargos de Declaração opostos neste caso, apontando a evidente contradição com a decisão plenária de 2013, foram rejeitados com base em decisão do ministro Alexandre de Moraes, na qual afirma não haver nenhum vício no acórdão embargado, sem, no entanto, enfrentar a questão. Infelizmente, ao julgar o tema virtualmente, sem a participação simultânea dos ministros, não houve um debate claro do tema e sequer puderam os integrantes da Primeira Turma evidenciar que a questão da validade das normas foi, sim, objeto do julgamento de 2013.

Portanto, neste caso, verifica-se que o STF atuou em sentido contrário à aplicação da segurança jurídica, tendo em vista que os fundamentos de decidir se prestaram exclusivamente a justificar a manutenção da arrecadação a qualquer custo, apelando para “fenômenos” absolutamente antijurídicos — como o prejuízo ao erário e a constitucionalização superveniente de norma morta. Ou seja, pode-se dizer que neste julgamento foi aplicada a ideia maquiavélica de que os fins justificam os meios, ainda que tais meios sejam inconstitucionais.

Fonte: Jota