Fim da isenção aos livros preocupa mercado, que já vivia crise antes da pandemia

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Proposta do Ministério da Economia, por meio da CBS, acaba com a isenção aos livros

O baiano Jorge Amado, um dos escritores mais reconhecidos nacional e internacionalmente, foi quem apresentou a emenda constitucional que consagrou a isenção tributária de livros no país. Incluído na Constituição de 1946, o texto de então isentava o papel. Com o passar dos anos, os livros, em si, ganharam a proteção. Depois de sobreviver a regimes autoritários, que perseguiram artistas e intelectuais, a períodos democráticos, a diferentes crises, esta proteção pode não resistir à reforma proposta por Paulo Guedes.

O ministro da Economia pretende tributar os livros com uma alíquota de 12% — isto porque, caso aprovado PL 3887/2020, que prevê a instituição da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), não seria renovado o tratamento dado ao produto até aqui. O plano tem recebido a oposição do mercado editorial e críticas da sociedade.

Para o escritor e então deputado constituinte de 74 anos atrás e os defensores da medida, ela é necessária para que os preços dos livros sejam mais acessíveis e o conhecimento possa alcançar maior parcela da população, especialmente àquelas de renda mais baixa.

Pela proposta de Guedes são imunes da CBS as entidades beneficentes de assistência social e isentos partidos políticos, igrejas, sindicatos, federações e confederações e condomínios edifícios residenciais. Além disso, são isentas as receitas decorrentes da prestação de serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS); venda de produtos da cesta básica; serviços de transporte público coletivo municipal; venda de imóvel residencial novo ou usado para pessoa natural; venda de materiais e prestação de serviços à Itaipu Binacional; o fornecimento de energia por ela; e dos atos entre as cooperativas e associados.

No início do mês o chefe da Economia defendeu que, ao invés da concessão de benefícios fiscais a editoras, o ideal é ampliar programas de doação de livros aos mais pobres. A posição foi dada em audiência da Comissão Mista da Reforma Tributária, na Câmara dos Deputados. O ministro disse que a doação direta de livros é mais eficiente.

“Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, o mais pobre. E não isentar o deputado Marcelo Freixo, que pode muito bem pagar um livro. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar”, disse o ministro ao responder o deputado do PSOL.

Guedes não explicou se o governo estuda estímulos para a doação direta de livros. Ao defender a ampliação dos programas de transferência de renda, Guedes ressaltou que as camadas de menor renda estão mais preocupadas em comprar comida do que comprar livros, “em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos”.

Presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Victor Tavares rebate o argumento de forma simples: “Doar que livros?”. Para ele, a alteração da política para o produto vai provocar o fechamento de editoras, a falência de livrarias, o desaparecimento de distribuidoras, a redução de títulos publicados, a concentração do mercado em umas poucas empresas mais fortes e a escassez de diversidade literária.

“Já estávamos, de fato, em uma situação muito complicada. Especialmente o varejo, as livrarias. Passamos por um período muito difícil em 2018. Em 2019, comparativamente, houve uma melhora. Pensamos que 2020 seria o ano da virada. Mas veio a pandemia e, agora, essa proposta. Se esse debate prosperar, o livro vai ficar mais caro para o leitor. Esse imposto é uma tragédia, e vai dificultar todo o ciclo de um produto que, em qualquer país do mundo, é tratado com um diferencial positivo”, enfatiza.

Tavares defende que o livro é tão essencial que deveria ser um item da cesta básica, dada a importância para a difusão do saber, do conhecimento, da cultura, da educação, no contexto social, e mesmo político e econômico.

Isenção personalizada
Os livros, de fato, têm merecido tratamento especial das políticas públicas e legisladores. Durante uma reforma tributária, no entanto, o momento seria o de pensar o melhor modelo para beneficiar os chamados bens meritórios. Assim entende o economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank autor de uma das proposições em discussão no Congresso Nacional.

A Proposta de Emenda à Constituição 45 não altera a situação dos produtos tal como é hoje. Mas isto por um detalhe de classificação. A PEC não altera a imunidade constitucional para o livro, e mantém o art. 150. O dispositivo, que está dentro da seção 2, Das Limitações do Poder de Tributar, do capítulo do Sistema Tributário Nacional da Constituição Federal, veda tributar livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão desses produtos.

“O que acontece na proposta do governo é que o livro tem uma contribuição social. E há entendimento de que a imunidade não alcança contribuições sociais, mas, na PEC 45, o IBS é um imposto. Então, aplica-se ao IBS”, explica. Pela proposta de Abby, tanto impostos como contribuições são unificados em um único imposto.

Para explicar a escolha, ele pondera: por que não tributar com alíquota normal e devolver para as famílias com certo limite o imposto incidente nos seus gastos com educação e saúde privados, por exemplo? Isto porque, nestes casos, também tidos por meritórios, a alíquota reduzida beneficia sobretudo quem tem renda mais alta.

“No momento da reforma, é preciso pensar se a melhor opção é a isenção, a redução de alíquota ou a isenção de alíquota personalizada, sobre consumo, que permite focalizar muito melhor os efeitos dessa política, especialmente do ponto de vista distributivo. A PEC 45 está preparada para trabalhar com este modelo”, defende.

As mudanças propostas pela PEC 45 preveem a tributação da cesta básica com base na alíquota uniforme, mas também a devolução às famílias de menor renda do imposto pago sobre itens da cesta básica – modelo conhecido como isenção personalizada. A ideia é devolver mensalmente para as famílias inscritas no Cadastro Único dos programas sociais um montante correspondente ao imposto incidente sobre o dispêndio médio dos 20% mais pobres da população com a cesta básica. Tal modelo beneficiaria, segundo Appy, basicamente as famílias dos três primeiros decis da distribuição de renda, ou seja, um terço da população brasileira, as faixas mais pobres.

Análise objetiva
O argumento do governo, no entanto, segue outra linha. O Ministério da Economia aponta que o manifesto das entidades dos livros parte da premissa de que, com dedução de tributo, o preço do produto cai. Embora a variação do ICMS não permita um estudo preciso, segundo a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, pesquisas feitas da Europa mostram que, na maioria dos casos, a redução de IVA (Imposto sobre o Valor Agregado) não é acompanhada pela diminuição de preços.

“É relativamente intuitivo entender o porquê. O mercado se ajusta à demanda. Se a demanda não se reduz, você mantém o mesmo preço. Se o valor da redução não é repassado ao consumidor e o consumo se mantém, você mantém. Antes de se pensar nesta política de disseminação da cultura, é preciso entender se a redução é repassada pelo preço”, aponta, acrescentando que quem mais se apropria da renúncia fiscal dos livros é a faixa dos 1% mais ricos da população.

Ela cita dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) de 2019, segundo a qual o 1% mais rico recebia, em média, R$ 26 mil por mês. E 71,8% dos periódicos, livros e revistas são consumidos por famílias com renda mensal acima de R$ 14,3 mil. Enquanto isso, famílias com rendimentos mensais até R$ 2.862 consomem 2,2% desses produtos.

O IVA tributa uniformemente o consumo, diz ela, porque presume que quando alguém compra algo tem capacidade contributiva. “Até que ponto o setor público vai usar dinheiro público para subsidiar um produto que quem ganha mais de 14 mil por mês pode comprar?”. Na visão dela, o caso dos livros é similar ao da cesta básica: a maioria das pessoas de mais alta renda consome mais produtos mais caros.

A diferença, diz a secretária, é que, no caso dos livros trata-se de preferências de consumo. “Não questiono o papel cultural ou educacional do livro. Mas, se eu isento os livros e não isento a música, o cinema, cirurgias médicas, de algum modo estou fazendo uma escolha pela sociedade. E me chama bastante atenção nesse debate como as pessoas não percebem que quando o governo faz isso na verdade ele está exercendo uma discricionariedade que não deveria caber ao gestor público, ou seja, dizer o que traz mais cultura, mais conhecimento”, ressalta.

Outro ponto levantado por ela é que, diante de uma lista de itens importantes que merecem renúncia fiscal, a alíquota geral subiria. A diretriz da CBS foi, segundo ela, homogênea. “A questão aqui não é o valor, mas o princípio, da análise objetiva”, destaca. Esta análise objetiva também impediria a entrada de grupos de pressão das discussões da reforma tributária, para disputar por diferentes setores.

Por fim, ela reconhece as dificuldades pelas quais têm passado o mercado editorial. Mas acrescenta que é preciso distinguir que parte do problema advém da tributação e que parte é estrutura, diante das transformações do mercado e do perfil de consumo.

Carga elevada
Na análise do advogado tributarista Gustavo Brigagão, do Brigagão, Duque Estrada Advogados, e presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro, no entanto, esta alíquota homogênea é mais alta do que poderia-se esperar. “É uma carga tributária elevada de 12% [de CBS] que vai passar a incidir. São 12% sobre receita bruta, sobre faturamento, o que tem peso para quem não tinha essa carga antes. Uma imposição de carga tributária como essa vai de encontro a tudo que sempre se fez para proteger a literatura e o livro”, avalia.

O advogado afirma que a alíquota de 12% é “completamente inesperada”. “Se pensarmos que o PIS/Cofins cumulativo era de 3,65% e não cumulativo de 7,25%, imaginava-se que teríamos uma proposta de algo intermediário. Mas a imposição de 12% é completamente inesperada”, compara. Gustavo Brigagão diz que vários setores podem sofrer com este valor, como o de serviços ou agroindustrial.

Ele lembra que o insumo do livro não gera muitos créditos e, portanto, o impacto da carga tributária seria ainda maior. “Não se deveria tributar com alíquota nenhuma. Não importa quem consome, se são as classes mais abastadas. Deveria ser acessível a todas as classes da sociedade independentemente do quanto cada classe de fato acessar. Se atinge mais os mais ricos, aí tem-se que tomar providências para que as demais classes também tenham acesso”, afirma.

O impacto de passar de 0% para 12% é, segundo José Ângelo Xavier, presidente da AbreLivros (Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares), desastroso. “O livro tem um preço sugerido e os elos da cadeia trabalham com descontos. O autor tem um percentual sobre esse preço sugerido, e assim segue. São margens muito justas para todos os participantes da cadeia. Encontrar espaço para acomodar isso vai ser bem difícil. Muitas empresas vão ficar pelo caminho”, lamenta.

De acordo com ele, as consequências são muitas. Além do fechamento de empresas, autores podem perder o interesse diante das dificuldades, a chamada bibliodiversidade tende a ser reduzida e o livro perde a função social. No mercado de livros escolares, em que ele atua, o impacto poderá ser sentido pelo próprio governo.

O governo é hoje um dos principais compradores de livros pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), destinando cerca de R$ 1,5 bi em programas de livros em todas as compras feitas. “Nesse sentido, mesmo o MEC vai sofrer a penalização. E o que a gente escuta todos os dias é que já se fala em redução de orçamento da educação. O mesmo vale para estados e municípios. E também as escolas privadas, que é um mercado difícil, com muito reaproveitamento de livros.”

No mundo
Segundo levantamentos da International Publishers Association, que comparam a cobrança do IVA em diversos países ao redor do mundo, a maior parte dos países também leva em consideração a importância social da literatura e aplica taxas reduzidas ou garante isenção principalmente para livros impressos.

Em 53 nações, ou 39,5%, os consumidores não pagam nenhum valor de IVA no preço final dos livros, enquanto em 49 países (36,5%), são aplicadas alíquotas reduzidas e em 32 países (24%), o imposto é aplicado normalmente. De todas as regiões do mundo, a América Latina é a única em que praticamente todos os países, com exceção do Chile — que cobra a alíquota padrão —, não cobram sobre os livros nenhum imposto que incide sobre bens e serviços.

Fonte: Jota