OPINIÃO: Transporte fretado de passageiros: inconstitucionalidade na lei que regula o Simples

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O STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre algumas vedações contidas na legislação que simplifica a arrecadação para as ME e EPP.

 O regime compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscalização de tributos aplicável às ME e EPP — instituído pela LC nº 123/06 e conhecido como Simples — trouxe, em sua redação legal (artigo 17, inciso VI), uma vedação específica para o transporte rodoviário fretado de passageiros, impedindo que este setor pudesse aderir aos seus benefícios.

Art. 17. Não poderão recolher os impostos e contribuições na forma do Simples Nacional a ME ou EPP:

VI – que preste serviço de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros, exceto quando na modalidade fluvial ou quando possuir características de transporte urbano ou metropolitano ou realizar-se sob fretamento contínuo em área metropolitana para o transporte de estudantes ou trabalhadores;

Recentemente, foi apresentado no TJ-MG um incidente de arguição de inconstitucionalidade [1] para que o tribunal — antes de enfrentar um outro tema [2] atrelado ao mesmo assunto — se manifeste, exercendo o controle difuso sobre a (in)constitucionalidade do inciso que trouxe a vedação para o transporte fretado.


Pposição do STF quanto às vedações de acesso ao Simples
O STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre algumas vedações contidas na legislação que simplifica a arrecadação para as ME e EPP. No entanto, a discussão chegou à corte no ano de 1997 e teve o seu julgamento finalizado em 2002 sob relatoria do ex-ministro Maurício Corrêa. Na ocasião do julgamento daquela ADI nº 1643, restaram vencidos os ex-ministros Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio.

O objeto da ADI envolvia as vedações contidas no artigo 9º da antiga Lei 9.317/96 — revogada pela LC 123 — e que, dentre outros setores e atividades, proibia os profissionais liberais de optarem pelo Simples. O artigo 9º que foi debatido na corte não incluía o transporte fretado. A vedação deste setor foi inserida em um artigo separado e exclusivo.
A ADI foi julgada improcedente, sendo que os ex-ministros vencidos votaram pela observância da redação condita no artigo 150, inciso II da CF/88, e o voto vencedor fundamentou suas razões nas seguintes premissas:

Com essa visão social e econômica, o art. 9º da Lei nº 9.317/96 relacionou uma série de situações relativas às pessoas jurídicas tidas pelo legislador como incompatíveis com o tratamento fiscal e administrativo preconizado naquele dispositivo constitucionais, tais como: valor da receita bruta, participação societária dos seus integrantes em outras empresas, forma de sociedade, limite de venda de produtor importados, representação de empresa estrangeira, ramo de atividade, etc. Com efeito (..) não resta dúvida de que as sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamente não sofrem impacto do domínio de mercado pelas grandes empresas; não se encontram, de modo substancial, inseridas no contexto da econômica informal; em razão do preparo científico, técnico e profissional dos seus sócios estão em condições de disputar o mercado de trabalho, sem assistência do Estado; não constituiriam, em satisfatória escada, fonte de geração de empregos se lhes fosse permitido optar pelo ‘Sistema Simples’. (…) Certo, portanto, que não ocorre violação ao princípio da igualdade tributária (CF, artigo 150, IV) nem ao que veda qualquer forma de discriminação (CF, artigo 3º, IV) tendo-se em vista que a norma insculpida no § 1º do artigo 145 da Constituição prevê que os impostos terão caráter pessoal, considerando-se, para a efetividade desse objetivo, “o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”, e que o preceito do artigo 179 determina expressamente seja dado tratamento “jurídico diferenciado” às ME e EPP

Desde o julgamento acima, ocorrido há mais de 20 anos, o STF foi provocado para se manifestar sobre outros temas ligados à “livre concorrência e ao tratamento tributário diferenciado”, ocasião em que mencionaram a ADI nº 1643 e fundamentaram a legalidade das vedações nos seguintes contextos:

ADI 5282, relatada pelo ministro André Mendonça e julgada em 10/10/22 [3]

(..) Porém, com as devidas vênias, também não entendo correta essa tese, por duas razões. A primeira refere-se à margem de conformação dos Poderes eleitos na definição da política fiscal do ente federado, independentemente da finalidade da medida ser fiscal ou extrafiscal. Na verdade, compreendo ser viável — e, diga-se de passagem, bastante comum — a diferenciação no campo da tributação do IPVA de acordo com objetivos constitucionais, v.g. estimular a compra de veículos novos em prol do desenvolvimento e da industrialização no Brasil ou o mercado interno como patrimônio nacional (art. 219, CRFB). Por conseguinte, não consigo comungar de concepção segundo a qual as situações em questão são equivalentes, à luz do art. 150, inc. II, do Texto Constitucional. (…)

III – O princípio da igualdade tributária não resta ofendido na hipótese de um veículo automotor novo submeter-se a alíquota distinta de IPVA em comparação a outro automóvel adquirido em anos anteriores no lapso referente aos 90 (noventa) dias – noventena -, em certo exercício financeiro. Sendo assim, pela própria sistemática de tributação do IPVA posta na legislação infraconstitucional, não se cuida de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

Ao abordar os objetivos da LC 123/06 no julgamento de um RE destinado à análise da constitucionalidade da regra que exigia a apresentação de certidão negativa de débito para o enquadramento da ME e EPP no Simples, o STF destacou as seguintes premissas legais e principiológicas — utilizando a ADI Nº 1643 nas suas referências.

RE 627543, relatado pelo Min. Dias Toffoli e julgado em 30/10/13[4]

(..)Dessa perspectiva, mesmo que a adesão [SIMPLES] seja facultativa e que as vedações ao ingresso no regime constem expressamente do texto legal, os critérios da opção legislativa precisam, necessariamente, ser compatíveis com os preceitos constitucionais que regulam o tema. No que se refere aos critérios adotados pelo legislador, é de se observar que ele buscou amparo, preliminarmente, na receita bruta auferida pela pessoa jurídica (..) em um segundo momento, estipulou requisitos e hipóteses de vedações, norteando-se, fundamentalmente, por aspectos relacionados ao contribuinte e por fatores preponderantemente extrafiscais. (..) Desse precedente, o que é mais relevante para o caso em comento é que a Corte reconheceu [referenciando a ADI 1643] a possibilidade de se estabelecerem exclusões do regime simplificado com base em critérios subjetivos (..) Nesse ponto cumpre notar que, na instituição do Simples Nacional , tendo em vista o desiderato constitucional, o legislador avançou no sentido de abarcar a maior parte da classe empresarial brasileira, com vistas, em primeiro lugar, a implementar a justiça tributária, diferenciando dos demais contribuintes as Me e EPP, em razão da capacidade contributiva , presumidamente menor, de tais empresas.(..) A propósito, é justamente na defesa do princípio da isonomia – ou igualdade – tributária que se busca amparo para a discriminação insculpida no dispositivo impugnado.

Os julgamentos reproduzidos acima trazem valiosas lições quanto à lógica interpretativa conferida às outras hipóteses de vedações contidas no artigo 17 da lei que regula o Simples.

De acordo com o STF, se a política extrafiscal adotada na legislação infraconstitucional tem o objetivo de diferenciar condições para privilegiar aquelas que estão de acordo com os objetivos constitucionais, não haverá afronta à Constituição.
Lado outro, a vedação às empresas que possuam débito com INSS e Fazendas Públicas não afronta o princípio da isonomia tributária, uma vez que o regime instituído pelo Simples foi criado para diferenciar, em iguais condições, os empreendedores com menor capacidade contributiva e menor poder econômico, sendo desarrazoado favorecer aqueles contribuintes com débitos fiscais.

Concluindo o posicionamento que vem sendo visto nos julgamentos que fazem referência à ADI nº 1643, julgada em 2002 e que tratou especificamente do artigo 9º da Lei 9.317/96 (revogada pela LC 123/06), será preciso avaliar se a lógica daquele momento histórico — incluindo a lógica legislativa, econômica e jurisprudencial ainda consegue conferir o sentido necessário para a análise quanto à manutenção desta vedação de acesso do transporte fretado atualmente.

Ou seja, a legislação atual exige que uma ME ou EPP que possui, por exemplo, apenas um microônibus e transporta, regularmente, passageiros entre duas cidades do interior, seja tributada da mesma forma que um grupo empresarial que opera, por exemplo, fornecendo o transporte de passageiros nas rodoviárias de São Paulo para todas as outras capitais do país e que possuem 4 mil ônibus executivos de viagem.

Partindo desta lógica e do princípio de que toda Lei deve afeiçoar-se à CF, surgem alguns questionamentos que deverão integrar o julgamento que será promovido na apreciação da inconstitucionalidade, como, por exemplo, qual seria a razão constitucional para que ME e EPP que exerçam a atividade de transporte fretado sejam excluídas do Simples.

Se se compara aquela lógica de equiparação das empresas quanto à necessária quitação de tributos no julgamento do RE e a transfere para outro contexto, como, por exemplo, o fato das empresas de transporte de carga que podem aderir ao Simples, qual a razão da vedação de ingresso às ME e EPP do transporte fretado?

Veja-se que o próprio relator daquele RE em que se reafirmou a constitucionalidade de um dos tipos vedação de ingresso no regime instituído pela LC 123/06 é categórico ao descrever as razões legislativas da norma:

concretizar as diretrizes constitucionais do tratamento jurídico favorecido e diferenciado às ME e às EPP constituídas sob as Leis brasileiras. A iniciativa encontra matriz constitucional nos arts. 170, IX, e 179 da Carta Maior, que assim dispõem (…) O conjunto desses dispositivos constitucionais traduz, na teoria jurídica, para alguns autores, o chamado princípio do tratamento favorecido para ME e EPP. Para além de razões jurídicas, esse princípio está fundado em questões econômicas e sociais ligadas à necessidade de se conferirem condições justas e igualitárias de competição para essas empresas. Segundo dados estatísticos públicos e privados, 97,5% das empresas registradas em nosso país são microempresas ou empresas de pequeno porte. Essas empresas geram 57% dos empregos formais e respondem por 26% da massa salarial total do Brasil.

Lado outro, embora a ADI nº 1643 referenciada no julgamento do RE citado acima tivesse como objeto um artigo de lei que não tratava da questão ligada ao transporte fretado, a análise que será promovida pelo TJ-MG ao julgar o incidente precisará interpretar esta vedação de acordo com o contexto econômico e legislativo contemporâneo.

O setor de transporte fretado foi um dos mais abalados pelas restrições impostas no período da pandemia da Covid-19. Inúmeras empresas foram levadas à falência em razão da impossibilidade de renegociar contratos de financiamentos de veículos; locação de garagens; salários de motoristas; manutenção mecânica etc., enquanto as restrições perduraram — fatos que aprofundam e impedem o reaquecimento de um setor que não pode contar com o regime de tributação mais benéfico.

Não há lógica interpretativa ou política extrafiscal que justifique a exclusão deste setor do Simples. Desde o julgamento da ADI nº 1643, o país já passou por reforma tributária, administrativa, regulatória e 132 emendas à CF. Já precisou enfrentar a chegada dos aplicativos de transporte e da mudança drástica nas formas de contratar e se locomover; a (in)constitucionalidade do artigo 17, inciso VI da LC 123 precisará ser analisada a partir destas mudanças.

Orientação doutrinária quanto à inconstitucionalidade das exclusões setoriais na LC 123/06
O professor e orientador do mestrado em direito da USP Guilherme A. S. Mendes elaborou artigo científico que teve como objeto a análise da constitucionalidade das exclusões setoriais presentes na LC 123, oportunidade em que produziu as seguintes análises:

A CF determina o tratamento jurídico favorecido, inclusive e, sobretudo, no campo das obrigações tributárias, para as pequenas empresas, sem estabelecer qualquer exceção explícita. Nada obstante, todas as Leis que introduziram regras tributárias mais benéficas orientadas por esse preceito superior discriminaram empreendimentos diminutos em razão do setor econômico de atuação.

O atual regramento, chamado “Simples Nacional”, consta da Lei Complementar nº 123/06, mas dele não podem se beneficiar as menores unidades produtivas de diversos setores, tais como o automobilístico, o de transporte de passageiros, o de energia e o de fabricação de armas, bebidas e produtos de tabaco.

Ao demonstrar a erronia dos argumentos a favor de tais exclusões, o artigo sustenta que nenhuma dessas previsões encontra amparo constitucional. Ademais, com base numa análise crítica do direito positivo, demonstra-se que o intento oculto almejado com as exclusões foi o de reservar para o grande capital, em detrimento das iniciativas de menor porte, setores econômicos de elevada lucratividade. [5]

Ao esclarecer os aspectos que cercam a temática do chamado tratamento favorecido, o pesquisador destaca a lógica de implementação dos objetivos constitucionais da CF/88, especialmente a concorrência e eficiência:

O tratamento favorecido, contudo, não se limita a buscar a igualdade entre as diversas empresas quanto ao seu porte, muito menos corresponde apenas a cuidar de desvalidos econômicos. O regime jurídico especial para as pequenas unidades produtivas é instrumento para a consecução de diversos e relevantes intentos constitucionais. De um lado, tem por escopo preservar as bases capitalistas de produção constantemente corroídas pelas distorções do modelo liberal, sendo uma delas a concentração econômica que afasta o mercado real do modelo ideal da concorrência perfeita de máxima eficiência; de outro, visa atender os mais variados direitos da ordem social por meio da ampliação das oportunidades de trabalho. [6]

Especificamente quanto as vedações de ingresso no Simples em razão do setor que a empresa se enquadra e atividade que desenvolve, o artigo destaca a ausência de lógica jurídica e constitucional para a positivação dessas vedações, o que evidencia a inconstitucionalidade do inciso VI do artigo 17.

Mas, afinal, que razão legítima poderia fundamentar o impedimento de pequenas empresas, atuantes no transporte interestadual e intermunicipal de passageiros, optarem pelo regime unificado de tributação? Mais uma vez, há autores que, equivocadamente, consideram impossível a atuação dos empreendimentos de menor porte nesse ramo de negócios.

É o caso de Fracarolli, que entende ser necessário grande capital para o exercício dessa atividade. Nas suas palavras, “o próprio ramo de transportes e das comunicações é incompatível com a natureza da pequena empresa, por exigir um grande capital, conhecimento técnico e tecnológico aprimorado e muitos empregados” (1976, p.123).

No entanto, novamente, a evidência empírica infirma essa posição. A Viação 1001, por exemplo, com uma frota atual de mais de 1.200 veículos, foi fundada na década de 1940 com um único ônibus e por um jovem de apenas 18 anos de idade (Jelson C. Antunes). Ademais, como justificar esse impedimento apenas para o transporte de passageiros, mas não para o de carga? A distinção de tratamento nos leva a crer que a ingerência política do grupo de empresas pertencentes ao primeiro setor foi mais eficaz que a do segundo.[7]

Este é o contexto vivenciado pelas ME e EPP que exercem a atividade de transporte fretado de passageiros e as razões que foram levadas ao TJ-MG para que o tribunal, exercendo o controle difuso, se manifeste quanto à inconstitucionalidade do artigo 17, inciso VI da lei que instituiu o Simples e que deverá ser enfrentada nos próximos meses.

 

[1] Incidente de arguição de inconstitucionalidade apresentado pelo Escritório Batista Xavier e Dornas Advogados – TJMG – Arg. Inc: 1.0000.21.064581-8/003

[2] TJMG – IRDR: 1.0000.21.064581-8/002

[3] STF – ADI 5282, Relator: André Mendonça, Tribunal Pleno, julgado em 18-10-22, DIVULG 04-11-22.

[4] STF – RE 627543, Relator: Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 30-10-13, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral-Public 29-10-14

[5] MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. Simples Nacional: Análise da Constitucionalidade das Exclusões Setoriais. In: Fabiana C. Severi; Flávia Trentini. (Org.). Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito: Coletânea de Estudos. 1ed.Ribeirão Preto: Faculdade de Direito USP, 2019, v. 1, p. 250-280.

[6] MENDES, Guilherme A. S.. Simples: op. cit., p p. 250-280.

[7] MENDES, Guilherme A. S.. Simples: op. cit., p p. 250-280.