OPINIÃO: Ser ou não ser?! Eis a questão dos fundos estaduais e seus adicionais ICMS

Últimas Notícias
Na obra de Shakespeare, o príncipe Hamlet precisa decidir se põe fim à sua existência ou se luta contra a angústia gerada pelo assassinato de seu pai, promovido por seu tio

 Na obra de Shakespeare, o príncipe Hamlet precisa decidir se põe fim à sua existência ou se luta contra a angústia gerada pelo assassinato de seu pai, promovido por seu tio. O autoquestionamento "to be or not to be" surge do dilema existencial: vale a pena brigar contra as atrocidades que a vida nos reserva ou seria melhor buscar conforto na calmaria sepulcral? A dramática expressão shakespeariana admite diversas inflexões e uma delas é plenamente aplicável à figura dos fundos estaduais destinados ao reequilíbrio fiscal.

No pacto federativo estabelecido na Constituição de 1988, o povo brasileiro chegou a um consenso: União, estados, Distrito Federal e municípios têm, cada qual, suas funções institucionais. Para assegurar a execução dessas atividades, os entes federados obteriam seus recursos por meio do exercício de suas competências tributárias previamente especificadas e repartidas.

Para os estados e Distrito Federal, a principal fonte de receita é o ICMS, que levou aos cofres dos referidos entes federados, apenas em 2022, quase R$ 691 bilhões ou 84,8% do total arrecadado. Conforme definido na Constituição, o ICMS é um imposto não cumulativo incidente sobre a circulação de mercadorias, o transporte interestadual e intermunicipal e os serviços de comunicação, sendo que a concessão ou a revogação de benefícios fiscais atrelados ao referido tributo depende de aprovação no Conselho Nacional de Política Fazendária, o Confaz, composto pelos estados e Distrito Federal.

 

Ocorre que, sem qualquer amparo constitucional, o Confaz pretendeu se arvorar no direito de autorizar a criação de fundos estaduais, que seriam compostos por "depósitos" realizados obrigatoriamente pelos contribuintes de um valor correspondente a, no mínimo, 10% do valor do ICMS não recolhido em função de benefícios fiscais.

Menos de quatro meses após a autorização do Confaz, o estado do Rio de Janeiro, que possui mais de 600 benefícios fiscais de ICMS em vigor, aproveitou o embalo para criar o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (Feef), sucedido pelo Fundo Orçamentário Temporário (FOT), condicionando a fruição de tais incentivos fiscais ao depósito de uma “contribuição” correspondente a 10% do valor do benefício utilizado.

O objetivo era claro: melhorar as contas públicas. A causa é evidente: má gestão das autoridades competentes. O meio foi perverso: criação de nova espécie tributária. E, o resultado não poderia ser outro: abalo à segurança jurídica, uma vez que, sem respaldo constitucional, o estado do Rio de Janeiro simplesmente não precisaria submeter as contribuições ao FOT aos limites de sua competência tributária.

Nesse sentido, as "contribuições" ao fundo estadual não precisariam respeitar um prazo de carência, a chamada anterioridade tributária, podendo ser exigidas desde a publicação da lei estadual instituidora da nova sistemática de tributação, bem como não se sujeitariam à não cumulatividade do ICMS, segundo a qual a cobrança do imposto precisa ser realizada sobre a margem agregada e não sobre o preço de venda, evitando-se o efeito cascata repelido pelo constituinte originário.

Além disso, tampouco necessitariam respeitar a máxima de que benefícios fiscais concedidos a prazo certo e sob condição onerosa não podem ser alterados, desamparando os contribuintes que, confiando legitimamente no poder público, investiram seus recursos na ampliação de suas atividades empresariais, adquirindo maquinários, ampliando parques estaduais e, ainda, contratando mão-de-obra.

A falta de um controle jurisdicional sobre o fundo idealizado pelo Confaz e, ato contínuo, criado pelo estado do Rio de Janeiro encorajou outros entes da Federação a adotarem a mesma medida. Atualmente, ao menos dezessete estados e o Distrito Federal já contam com fundos dessa natureza, que, sem qualquer amparo constitucional, podem ser livremente ampliados, bastando que assim se estabeleça em convênio do Confaz.

O tema se encontra, hoje, com julgamento virtual em curso perante o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.635/RJ. A relevância do assunto sugere que o caso deveria, no mínimo, estar sendo julgado em plenário, de forma presencial, permitindo que o contribuinte brasileiro acompanhasse os debates e compreendesse as razões pelas quais seria autorizado que estados e Distrito Federal criassem fundos sem qualquer baliza constitucional.

Importante dizer, ainda, que, a despeito do voto do relator, ministro Roberto Barroso, trilhar o caminho difícil do reconhecimento da legitimidade da lei estadual fluminense, há um claro acolhimento de que tanto o Feef quanto o FOT devem obediência ao regime de não cumulatividade, o que, convenhamos, não acontece no caso concreto.

Espera-se que o Tribunal Supremo, guardião da Constituição, admita a absoluta insubsistência das "contribuições" ao FOT. Afinal, embora possam ter algum cheiro de ICMS, as "contribuições" ao FOT, na realidade, possuem muito mais pontos de divergência do que de convergência com o imposto estadual e, sobretudo, com as normas constitucionais.

Na dúvida existencial das "contribuições" aos fundos estaduais, há apenas uma única certeza: not to be.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2023, 12h29, Por Guilherme Tostes e Sandro Machado