Prescrição Intercorrente e o PAF: on ne résiste pas a l'invasion des idées!

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seguindo a trilha do autor, de que pelo menos essas matérias se sujeitariam apenas ao Decreto nº 70.235/72, mas não ao CTN

 Após o nosso último artigo sobre a prescrição intercorrente de multas aduaneiras [1], lemos atentamente os artigos publicados por Rosaldo Trevisan [2], que também tratam do tema. Esses textos merecem nossa atenção não apenas por serem a mais estruturada, senão a única, posição acadêmica publicada em sentido contrário ao que temos defendido, mas para confrontar alguns equívocos que têm sido ecoados pela União nos tribunais.

Comecemos a abordar nossas discordâncias pelos nossos pontos de concordância.

Trevisan afirma, corretamente, que existem pontos de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro e, por isso, não se pode reduzir um a antípoda do outro. De fato, o grande desafio no tema não é a definição do regime jurídico material, que nos é dado com clareza pela legislação de regência, mas sim estabelecer a natureza do crédito, se tributário ou não.

 

Existem infrações decorrentes de deveres administrativos 1) estritamente ligados ao controle aduaneiro (deveres aduaneiros); 2) no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos aduaneiros (obrigações acessórias tributárias); 3) relacionados tanto ao controle aduaneiro quanto à arrecadação/fiscalização dos tributos (deveres híbridos). Para os primeiros, o crédito decorrente da infração teria natureza não tributária, sujeita à Lei nº 9.873/99, e, para os segundos, natureza tributária, sujeita ao CTN. A complexidade residiria na determinação da natureza e regime do crédito decorrente desses deveres híbridos.

Por outro lado, o próprio Rosaldo Trevisan nos dá pelo menos dois exemplos que pertencem à "parte da área aduaneira que não intersecciona a tributária", (...) "parte essa que, portanto, não estaria sujeita às regras do CTN e do Dec. 70.235/1972, a menos que outro comando legal expressamente o determinasse": 1) os direitos antidumping e compensatórios (artigo 7, §5º da Lei nº 9.019/95) e 2) a multa substitutiva do perdimento (artigo 23, §3º, do DL nº 1.455/76). Nos dois exemplos citados por ele, há remissões exclusivamente ao rito do Decreto nº 70.235/72, inexistindo comando que estabeleça, por remissão, a adoção do CTN para reger essas matérias.

Ora, seguindo a trilha do autor, de que pelo menos essas matérias se sujeitariam apenas ao Decreto nº 70.235/72, mas não ao CTN, pela ausência de remissão, defluem algumas conclusões lógicas:

1) o fato de essas matérias estarem sujeitas ao rito do PAF não afeta a sua natureza não tributária, já que a remissão é feita apenas em relação ao Decreto nº 70.235/72, caso contrário, estar-se-ia sustentando o absurdo de, a depender do procedimento, o regime jurídico do crédito seria alterado (em bom português, para que qualquer um entenda: "o cachorro que abana o rabo, não o rabo que abana o cachorro").

2) Não sujeitos ao CTN, pela ausência de "comando legal [que] expressamente o determinasse", não estariam sujeitas às regras de prescrição e decadência daquele Código — ausência de previsão específica a respeito de prescrição intercorrente no PAF, no CTN, é o fundamento determinante tanto da posição firmada pelo STF nos ED no RE nº 94.462/SP [3], como pelo STJ no REsp nº 840.111/RJ [4].

3) Da conclusão pela inaplicabilidade do CTN à multas aduaneiras "inequívocas", como indicado por Trevisan, parece-nos que a única conclusão lógica seria a necessidade de distinguishing da Súmula CARF nº 11 para esses casos, para que se analise o regime jurídico do crédito e se verifique a aplicabilidade da Lei nº 9.873/99.

Repita-se, a única forma de afastar as conclusões acima seria: 1) sustentar que Trevisan estaria absolutamente equivocado quanto à natureza dos créditos mencionados, o que não nos parece ser o caso; ou 2) que prescrição intercorrente seria matéria processual e dependeria do rito adotado.

Quanto ao primeiro ponto, reluto em acreditar que alguém defenderia, com seriedade científica, que a multa decorrente da conversão da pena de perdimento teria natureza de crédito tributário, pois isso implicaria reconhecer à penalidade original também esse caráter, o que não tem qualquer sentido.

Quanto ao segundo ponto, além de ir contra as lições jurídicas mais comezinhas, também contraria o recente entendimento do STF, firmado no julgamento do RE nº 636.562, onde se afirmou, expressamente, que "A prescrição intercorrente obedece à natureza jurídica do crédito subjacente à demanda" [5]. É óbvio: o Decreto nº 70.235/72 não trata de prescrição e decadência, porque todas são decorrências, como disse a Suprema Corte, da natureza jurídica do crédito, seu regime material, e não do rito procedimental a que se submete [6]. Misturar as duas coisas é um erro grave na compreensão dos institutos.

Parecem-nos, portanto, que as ilações acima seriam inescapáveis, assumindo a existência de casos inequivocamente aduaneiros.

Em um momento, o autor culpa a Portaria MF nº 260/2020 por "ter ensejado a reinterpretação da lei de 1999 [Lei nº 9.873/99]", porque não haveria diversos "tipos de processo", já que todos estariam sujeitos a "um mesmo rito processual, previsto no Decreto 70.235/1972". Esse equívoco já foi esclarecido em outra oportunidade: a distinção entre diversos tipos de "processos" decorre dos distintos direitos materiais a serem aplicados por cada um, podendo haver desde uma diferenciação total de procedimentos (e.g. processo civil e penal), passando por uma coincidência parcial (e.g. processo civil e trabalhista), até uma coincidência total (e.g. processo civil e do consumidor) [7].

A posição do autor, a esse respeito, implicaria a aplicação do CTN para qualquer matéria sujeita ao Decreto nº 70.235/72, já que, em seu entender, o rito procedimental supostamente determinaria o regime material, conflitando, e.g., com a Súmula CARF nº 184, com o Tema 390 do STF (citado supra) e com o entendimento por ele mesmo adotado em outras oportunidades (e.g. acórdãos nº 3401-004.351 [8] e 3403-002.865 [9]).

Argumenta também que a distinção terminológica entre "legislação tributária e aduaneira" teria surgido apenas com a Lei nº 10.833/03, como forma de sugerir que, anteriormente, tudo seria tratado conjuntamente, salvo da doutrina. Esse argumento não procederia ainda que estivéssemos discutindo isso na década de 70.

A distinção entre créditos tributários e não tributários é expressa no artigo 39, §2º da Lei nº 4.320/64, e a extensão conceitual deles foi delimitada, com precisão, pelo CTN, em 1966. O Decreto-lei nº 37/1966 já separava em títulos distintos o Imposto de Importação das demais regras a respeito de controle aduaneiro. A CF/1946, por exemplo, já distinguia a competência para o poder de polícia aduaneira e para direito tributário. Quando menos, são irrelevantes os rótulos terminológicos, em sendo induvidoso que a aplicação das sanções em questão são decorrência do poder de polícia aduaneiro exercido pela União, enquadrando-se exatamente na hipótese do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.

A distinção entre os regimes jurídicos é um "palíndromo temporal": não importa se olhamos de 1966 para 2023 ou de 2023 para 1966, que as conclusões serão as mesmas à luz do Direito positivo.

Invoca também o artigo 67 do Ricarf e a redação da Súmula nº 2, para sustentar que o termo "tributário" teria um sentido mais amplo. Felizmente, o próprio Trevisan lembra que os créditos não tributários só são julgados pelo rito do Decreto nº 70.235/72, por força de remissões legislativas, e não pela aplicação direta das regras desse rito, direcionadas apenas aos créditos tributários federais (artigo 1º) — todo o resto o toma de empréstimo, por remissão. Quanto à Súmula nº 2, além de mal redigida, é despicienda, pois reproduz o que já estabelece o artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 [10], aplicável a todos ele adotem.

Por fim, afirma que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria um prazo de "prescrição da ação punitiva" e que o artigo 139 do DL nº 37/66, traria uma "extinção do direito de impor penalidade", e que apenas o primeiro previu a contagem no prazo de infração permanente ou continuada. Na sequência, afirma que a aplicação da Lei nº 9.873/99 às multas aduaneiras implicaria na derrogação do artigo 139 do DL nº 37/66.

Quanto a suposta "diferença" fundamental entre os prazos, ignora o REsp nº 1.115.078/RS, vinculante, que fixou que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria "prazo decadencial para se constituir o crédito decorrente de infração à legislação administrativa", tendo a mesma natureza e prazo do artigo 139 do DL nº 37/66 — não há conflito normativo entre as disposições.

Em relação às infrações continuadas, assim como para a prescrição intercorrente, deve valer o teor da Lei nº 9.873/99, diante da lacuna do DL nº 37/66 a esse respeito. Haveria derrogação se houvesse conflito — não havendo conflito, em razão do DL 37/66 ser lacunoso a respeito, tampouco haverá derrogação.

Como se vê, os argumentos aduzidos não sobrevivem ao menor esforço crítico, ignorando a jurisprudência do STF e STJ, conceitos fundamentais do Direito e toda sorte de pilares jurídicos que se coloquem entre o cientista e o "dogma" de negar a prescrição intercorrente das multas aduaneiras.

Não prosperando qualitativamente, o autor adotou um argumento quantitativo, sustentando que "o Poder Judiciário, majoritariamente, não admite a prescrição intercorrente sob o rito do Decreto 70.235". Aqui não há divergências, mas uma informação que não condiz com a estatística, conforme competente levantamento de jurimetria elaborado pelo colega Thales Belchior (disponível aqui), que evidencia o contrário: majoritariamente, reconhece-se a aplicação da prescrição intercorrente para as multas aduaneiras!

Para além disso, no dia 9/5/2023, foi julgado o REsp nº 1.999.532/RJ, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, analisando a penalidade prevista no artigo 107, IV, "e", do DL nº 37/66, de caráter inequivocamente aduaneiro, e reconheceu expressamente, verbis:

"As Turmas integrantes da 1ª Seção desta Corte firmaram orientação segundo a qual incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações de índole não tributária por mais de 03 (três) anos e ausente a prática de atos de impulsionamento do procedimento punitivo. Precedentes."

No seu voto, a ministra Regina Helena estabeleceu um corte: os deveres administrativos posteriores ao desembaraço aduaneiro não teriam perfil tributário, pois não guardam relação imediata com a fiscalização ou a arrecadação de tributos incidentes na operação internacional, mas, sim, com o controle do fluxo de bens econômicos do território nacional.

Ora, considerando o entendimento firmado pelos precedentes da 1ª Seção e o REsp nº 1.999.532/RJ, e a afirmação (de Trevisan) de que há multas inequivocamente não tributárias (como a da conversão da pena de perdimento — artigo 23 e 24 do DL nº 1.455/76), como ainda resta alguma dúvida da inaplicabilidade da Súmula Carf nº 11 para parte dos casos julgados naquele Tribunal?

Poderia haver alguma dúvida a respeito da fixação do regime jurídico para aqueles deveres administrativos que ficam na zona de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro, mas para as situações inequivocamente fora dessa zona, não há mais margem para hesitar e adotar subterfúgios que já foram afastados pela doutrina e, agora, pelo STJ.

Aliás, não haveria razões sequer para não se aplicar o REsp nº 1.115.078 [11], que estabelece com clareza a sua aplicação a infrações aduaneiras, com a jurisprudência do STJ uníssona no sentido de que ele não se aplicaria apenas às multas ambientais, mas a qualquer multa que se enquadre no artigo 1º da Lei nº 9.873/99. Criou-se uma situação pitoresca: o Carf contraria o STJ a respeito do alcance do seu repetitivo, restringindo-o! Com a devida vênia, isso extrapola a divergência de entendimentos e adentra o perigoso campo da desobediência de precedentes vinculantes e descumprimento do próprio Ricarf.

Há no Netflix um documentário chamado A Terra é Plana, que acompanha terraplanistas tentando, por experiências "científicas" demonstrar a validade da sua tese, mas, ao final (alerta de spoiler), o resultado deles acaba por confirmar que o planeta não é plano. Não comparamos quem de nós diverge com terraplanistas, mas fato é que depois que o tema ganhou relevância, argumentos "científicos" têm sido disparados a esmo, buscando infirmar as conclusões, mas que, postos sob escrutínio técnico, acabam sempre por ratificar e fortalecer a inescapável aplicação do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.

Acabam, no afã de infirmar a construção jurídica acima disposta, e prorrogar a recalcitrância, utilizam-se de uma "força argumentativa" que é muito mais força do que argumento, esquecendo-se que "nada é mais forte que uma ideia cuja hora chegou", clássica citação atribuída a Victor Hugo.

Para os que analisarão o tema, nos tribunais judiciais e administrativos, vale uma citação, essa sim de autoria comprovada, no L'Histoire d’un Crime, do autor francês: "On résiste a l'invasion des armées; on ne résiste pas a l'invasion des idées" — resistamos à invasão dos exércitos, mas não resistamos à invasão das ideias!

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 5 de julho de 2023, 8h00, por Carlos Augusto.