OPINIÃO : É possível refletir sobre a consensualidade no Direito Tributário Sancionador?

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A sanção tributária, como decorrência do exercício de poder inerente a atividade administrativa, engloba o desempenho de todas as atribuições sancionatórias que o Estado detém e exerce contra os atos que atacam ou maculam a ordem jurídica

O Estado democrático de Direito como vetor fundamental da República Federativa do Brasil [1] [2], na perspectiva de uma aparato institucional de concretização da eficácia das normas constitucionais e infraconstitucionais, objetiva à proteção dos direitos individuais, sociais e políticos, o alcance da justiça social e solidária [3], e pretende a inserção de um sistema de garantias em favor da sociedade, com fortalecimento da ação administrativa visando o aperfeiçoamento da prestação de serviços públicos, assegurados pelo exercício do poder de polícia. O Direito Tributário Sancionador, alinhado ao Direito Administrativo Sancionador, está mergulhado nesta dimensão.

O Direito Tributário Sancionador vem se desenvolvendo como sistema normativo que se fundamenta no Estado democrático e tutela a efetividade e cumprimento imperativo das normas jurídicas tributárias, através de potestade sancionatória que deve possuir uma funcionalidade e racionalidade singular, na tutela de interesses públicos.

A sanção tributária, como decorrência do exercício de poder inerente a atividade administrativa, engloba o desempenho de todas as atribuições sancionatórias que o Estado detém e exerce contra os atos que atacam ou maculam a ordem jurídica, garantindo o respeito ao cumprimento das normas jurídicas pelos membros da sociedade e promovendo a
recomposição da ordem jurídica tributária.

Nesta área do Direito marcado pela conflituosidade, pela alta litigância em relação adversarial que decorre da relação jurídica tributária que objetiva a imposição de uma prestação de pagar tributos, revelando dever fundamental de contribuição amparado na solidariedade fiscal, surge o questionamento, se neste terreno jurídico, é possível a realização
da consensualidade incidente sobre a potestade sancionatória tributária?

A hermenêutica como um processo de densificação de sentidos das normas jurídicas, é um percurso de constante mutação sujeitando-se às transformações de novos fenômenos sociais, históricos e culturais. A atividade interpretativa exerce um papel fundamental na concretização do Direito inserindo novos elementos no contexto comunicacional, adaptando os conteúdos legislados, que se sujeitam dinamicamente às novas ressignificações.

O potencial crescimento de uma atividade consensual sobre a potestade sancionatória exsurge com mudanças de diversos paradigmas que se mostram superados (ou reinterpretados) pela hermenêutica jurídica contemporânea. Novas significações que decorrem da intertextualidade são extraídas do processo de diálogo entre as normas constitucionais e
legais [4] em busca de um sistema jurídico racional, coerente e congruente.

O Direito Tributário Sancionador sofreu uma evolução a partir da constitucionalização das normas que direcionam as atividades do Estado, na medida em que este fenômeno implica a valorização de normas principiológicas na medida em que este fenômeno implica a valorização de normas principiológicas, fortalecimento de instrumentos jurídicos e outorgas de competências vocacionadas à concretização de valores constitucionais. Neste contexto, expande-se a possibilidade de substituição das prerrogativas exorbitantes do Estado (atos administrativos unilaterais e imperativos), adotando-se uma postura consensual com o administrado na construção de soluções concertadas, à luz de valores constitucionais.

Os interesses públicos consagrados de forma expressa como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil [5], com a constitucionalização do Direito Administrativo e Tributário assumiu uma nova conformação, influenciada pela proteção dos direitos fundamentais, caraterizando-se pela tutela de multiplicidade de interesses públicos relevantes pelo Estado, exigindo do poder público em diversos momentos postura mediadora de interesses juridicamente relevantes. A indisponibilidade de interesses públicos não se confunde com a intransigibilidade.

Poderão ser objeto de harmonização no exercício de atribuições consensualizadas entre o poder público e o particular, incluindo a atividade sancionatória, se atingir valores de relevância para a sociedade. Tratativas bilaterais, atinentes à prerrogativa pública, podem ser mais eficientes, no atingimento e realização de interesses tutelados pela ordem jurídica.

Há nova compreensão da funcionalidade do Direito Tributário Sancionador, cujas normas perseguem não apenas uma função repressiva, mas também função dissuasória, na medida em que pretende fomentar a mudança de comportamento social. Assume papel de destaque a atuação colaborativa do infrator, emitindo juízos e manifestações de vontades, no sentido de contribuir para a realização das finalidades públicas perseguidas pela administração pública.

Nesta vertente, a consensualização [6] da potestade sancionatória tributária possui aptidão para robustecer uma capacidade institucional do poder público para impulsionar a persuasão como alternativa a realização mais célere e eficaz de interesses públicos tutelados, e se consolidar como uma ferramenta de gestão, ou meio de se alcançar a indução de conformidade tributária de contribuintes que resulta no desempenho potencializado de uma competência da autoridade administrativa.

A consensualidade sobre a potestade sancionatória no Direito Tributário Sancionador se assenta em modelo jurídico sancionador alternativo à postura imperativa e unilateral, que tradicionalmente somente resulta na punição para a modificação de comportamentos, com a finalidade de proporcionar um resultado mais eficiente.

O incremento da consensualidade sobre a sanção tributária deve ser estimulado, e pode ser justificado pela ineficácia da finalidade dissuasória das penalidades administrativas, pela ineficiência investigativa em face das fraudes e condutas reiteradas e lesivas contra os interesses do Estado e multiplicidade de potestades sancionatórias estatais, sem aderência a
uma racionalidade sistêmica.

Soluções consensualizadas demandam o exercício satisfatório e com maior ônus argumentativo na demonstração de interesses públicos e da maior eficiência da ação administrativa, que se relaciona com a ponderação de valores a partir da avaliação de riscos e vantagens na adoção de determinada alternativa no caso concreto.

A consensualidade na atividade sancionadora acentua ou valoriza o exame do comportamento do administrado na montagem e na implementação de modelos sancionadores, o que está no centro da responsividade.

A teoria da regulação responsiva foi desenvolvida por Ian Ayres e John Braithwaite [7] com base na estrutura de uma pirâmide regulatória que é adotada como estratégia punitiva, sedimentada num percurso evolutivo e composta por medidas de (1) autorregulação; (2) autorregulação forçada; (3) regulação de comando com discricionariedade punitiva; e (4) regulação de comando sem discricionariedade punitiva.

Esta estratégia punitiva, em sua dinâmica de aplicação, postula e condiciona a existência de um equilíbrio entre persuasão, que decorre da concessão de incentivos, e dissuasão punitiva em sua potencialidade, nas relações que se desenvolvem numa comunicação dialógica com o administrado.

A regulação responsiva tem sido objeto de crescente reflexão e experimentação no Direito Administrativo Sancionador Regulatório no Brasil, ou seja, no campo da regulação estatal independente, a cargo de agências reguladoras. Mas sua base teórica pode ser
aproveitada em outros campos.

A partir da década de 1990, o modelo regulatório do Australian Taxation Office passou a adotar o método da regulação responsiva no Direito Tributário, sendo percursor na realização de um paradigma de conformidade nesta área [8], que foi identificado através de um vácuo
existente entre a ações que a administração poderia exercer a sua atividade punitiva e as condutas dos contribuintes no adimplemento voluntário da obrigação tributária para a sustentabilidade do sistema tributário [9].

Segundo Judith Freedman [10] a administração tributária não possui recursos disponíveis em abundância, assim, a pirâmide regulatória permite que seja reservada uma atuação menos invasiva, realizando uma abertura dialógica perante os contribuintes propensos às posturas de compliance, que se alojam na base da pirâmide. E proporcionar o desenvolvimento da atividade sancionatória seja concentrada aos contribuintes que mantém
comportamentos de riscos à efetividade do sistema tributário, que se situam no ápice da pirâmide, com a concentração de recursos.

A aplicabilidade da teoria da regulação responsiva no Direito Tributário visa a existência de um diálogo aberto entre a autoridade administrativa e o contribuinte valorizando aspectos de assunção de compromissos sociais, reforçando os aspectos positivos da conformidade fiscal, evitando nestas interações regulatórias o uso da potestade sancionatória, estimulando a
voluntariedade, cooperação e boa-fé no saneamento da conduta. E, em caso de resistência, ocorre a escalada piramidal de um nível mais alto e oneroso de fiscalização, podendo resultar na aplicação de sanções tributárias, conforme níveis de proporcionalidade [11].

Com efeito, a teoria da regulação responsiva estimula elementos psicológicos que permitem a modificação de comportamento dos contribuintes, e podem ser concretizados por meio arranjos consensuais nos quais se estabelecem a suspensão ou o diferimento das respostas sancionatórias, ensejando a superação do formalismo e impulsionando a
cooperação. Por outro lado, contribui para a inserção de maior eficiência no processo e no resultado, com a realização das finalidades instrumentais, no campo tributário.

A Constituição Federal nas disposições relacionadas ao sistema tributário nacional e às limitações do poder de tributar, com status de direitos e garantias fundamentais do contribuinte, eleva a estrita legalidade tributária ao status de princípio fundamental. Estabelece em suas vigas mestras que somente por meio de lei em sentido estrito, no seu aspecto formal e material, podem ser delimitados os elementos da regra-matriz de incidência tributária.

Denota-se uma vinculação positiva à lei dos atos da administração, no sentido de que o poder público somente pode realizar alguma ação administrativa, ordenadora ou decorrente do poder de polícia nos limites impostos pela lei em sentido estrito.

Em razão da maior gravidade aos direitos e à liberdade do administrado, que resulta da potestade sancionatória tributária, como atividade imperativa e unilateral, o Código Tributário Nacional [12] reservou a colmatação das sanções e infrações tributárias, por meio de lei em seu sentido formal e material.

No entanto, com o surgimento da crise do princípio da legalidade tributária, oriundo do alto grau de complexidade das relações jurídicas, exigindo maior tecnicidade, e com o desprestígio do legislador, a doutrina [13] destacou a eclosão de sua flexibilização ou a mitigação com o uso de utilização de técnicas como o emprego de cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados e a proliferação de normas regulamentares.

No Direito Tributário Sancionador, a consensualidade pode ser estabelecida por meio de lei ordinária que defina a competência da autoridade administrativa para a realização de acordos administrativos, permitindo ao poder regulamentar a sua disciplina, recaindo esta faculdade na autoridade máxima do órgão competente.

A eficiência administrativa (artigo 37, caput da CF), como valor finalístico da ação administrativa, pode ser compreendida no Direito Tributário Sancionador como exigência de valoração dos fundamentos relacionados à decisão administrativa, na escolha dos meios mais adequados.

Na atividade do agente público na tomada de decisão, em busca da potencialização da eficiência, deve-se realizar um julgamento equilibrado numa perspectiva prognóstica de resultados expressivos e maximizados em prol dos interesses públicos.

Assim, fundando-se em critérios objetivos e proporcionais, no uso da discricionariedade administrativa, a consensualidade se torna um instrumental para o alcance de uma decisão administrativa eficiente, com primazia conferida à análise dos meios, considerando que a pactuação de acordo administrativo pode erigir-se em alternativa otimizada no desempenho da ação administrativa.

O princípio constitucional da duração razoável do processo, possui por objetivo a supressão de morosidades dos processos administrativos trazendo segurança jurídica em favor do administrado, e, em favor da administração tributária, uma eficiência na aplicação das normas tributárias e sancionatórias, sem se descurar da qualidade da decisão final a ser
proferida pela autoridade competente.

A celebração de atos consensuais acerca da potestade sancionatória no curso de um processo administrativo sancionador, com uma alternativa posta à disposição da administração pública, a depender das circunstâncias que estejam presentes no caso em concreto, pode conduzir à imediata cessação de atos infracionais e restauração do ordenamento jurídico pelo administrado, com abreviação de processo administrativo sancionador. Sob esta perspectiva, o princípio da duração razoável do processo incorpora uma interpretação no sentido de incentivar ou fomentar a formalização de instrumentos consensuais sobre sanções tributárias.

Em conclusão, existem fundamentos e princípios constitucionais que permitem a construção de um entendimento sobre a possibilidade legítima de celebração de atos consensuais entre o Estado e contribuinte, que venham a incidir sobre a sanção tributária, o que, consequentemente, deve impulsionar reflexões teóricas e científicas sobre a consensualidade na dogmática do Direito Tributário Sancionador.

 


[1] CORREIA NETO, Celso de Barros. Os tributos e os direitos fundamentais. Revista de Estudos e Pesquisas
Avançadas do Terceiro Setor, Brasília (DF), v. 3, n. 2, jul./dez. 2016. DOI:
<
https://doi.org/10.31501/repats.v3i2.7491>. Disponível em:
<
https://portalrevistas.ucb.br/index.php/REPATS/article/view/7491>. Acesso em: 25 mar. 2022.
[2] Cf. art. 1o, caput da Constituição Federal.
[3] Cf. arts. 3, 170 e 193, todos da Constituição Federal.
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 7ª ed., rev. São Paulo: Noeses, 2018, p. 204.
[5] Cf. art. 3o da Constituição Federal.
[6] MARRARA, Thiago. Regulação consensual: o papel dos compromissos de cessação de prática no ajustamento de condutas dos regulados. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto (SP), v. 4, n. 1, p. 274-293, 2017. DOI: 
https://doi.org/10.1160/issn.2319-0558.v4i1p274-293. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/125810. Acesso em: 17. jun. 2022.
[7] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive regulation. Transcending the deregulation debate. New York (USA): Oxford University Press, 1995, p. 39.
[8] LEVINER, Sagit. An overview: a new era of tax enforcement–from "big stick" to responsive regulation. Regulation & Governance, v. 2, n. 3, p. 360-380, 2008. Disponível em: 
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.1748-5991.2008.00039.x>. Acesso em: 11 nov. 2022.
[9] BRAITHWAITE, Valerie. Responsive regulation and taxation: introduction. Law & Policy, v. 29, n. 1, p. 3-10, 2007. Disponível em: <
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1467-9930.2007.00242.x>. Acesso em: 11 nov. 2022.
[10] FREEDMAN, Judith. Responsive regulation, risk, and rules: Applying the theory to tax practice. UBCL Rev., v. 44, p. 627, 2011. Disponível em: 
https://heinonline.org/HOL/LandingPage?
handle=hein.journals/ubclr44&div=33&id=&page=
. Acesso em 25 out. 2022.
[11] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John, op. cit., p. 37.
[12] Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: [...] V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas.
[13] OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de. A transação em matéria tributária. 2013. 245 f. Dissertação (mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 120.

FONTE: CONJUR