OPINIÃO: O fim da sub-rogação do Funrural e seu impacto no setor agroindustrial

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A legislação de regência do Funrural foi marcada historicamente por problemas de técnica e funcionalidade.

A legislação de regência do Funrural foi marcada historicamente por problemas de técnica e funcionalidade.

O atual sistema vigente é fruto da Lei 8.212/1991, que dispôs sobre a organização da Seguridade Social e instituiu o Plano de Custeio no Brasil, em atendimento ao preceito constitucional firmado no artigo 195§8º da Constituição Federal (com modificações pela Emenda Constitucional nº 20/98). Tal diploma determinou, em seu artigo 25, que o trabalhador rural pessoa física e que tem funcionários registrados deveria contribuir, em relação aos seus empregados, sobre o resultado da comercialização de sua produção.

Já no artigo 30, cuidou da arrecadação e recolhimento, impondo a responsabilidade ao adquirente, por sub-rogação, pela obrigação do produtor rural empregador pessoa física, nos termos do inciso IV [1].

"Artigo 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas: (Redação dada pela Lei n° 8.620/1993).

(...)


IV - a empresa adquirente, consumidora ou consignatária ou a cooperativa ficam sub-rogadas nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea 'a' do inciso V do artigo 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do artigo 25 desta Lei, independentemente de as operações de venda ou consignação terem sido realizadas diretamente com o produtor ou com intermediário pessoa física, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento; (Redação dada pela Lei 9.528/1997)".

As celeumas em torno do tema são antigas. Em 2010, a Corte Constitucional já havia entendido pela inconstitucionalidade da sub-rogação, ao apreciar o RE 363.852, assim ementado:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO — PRESSUPOSTO ESPECÍFICO — VIOLÊNCIA À CONSTITUIÇÃO — ANÁLISE — CONCLUSÃO. Porque o Supremo, na análise da violência à Constituição, adota entendimento quanto à matéria de fundo do extraordinário, a conclusão a que chega deságua, conforme sempre sustentou a melhor doutrina — José Carlos Barbosa Moreira —, em provimento ou desprovimento do recurso, sendo impróprias as nomenclaturas conhecimento e não conhecimento. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL — COMERCIALIZAÇÃO DE BOVINOS — PRODUTORES RURAIS PESSOAS NATURAIS — SUB-ROGAÇÃO — LEI Nº 8.212/91 — ARTIGO 195, INCISO I, DA CARTA FEDERAL — PERÍODO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98 — UNICIDADE DE INCIDÊNCIA — EXCEÇÕES — COFINS E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL — PRECEDENTE — INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. Ante o texto constitucional, não subsiste a obrigação tributária sub-rogada do adquirente, presente a venda de bovinos por produtores rurais, pessoas naturais, prevista nos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com as redações decorrentes das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97. Aplicação de leis no tempo  considerações".

Posteriormente, em 2011, o STF, por votação unânime, em regime de repercussão geral (RE 596.177 / Tema 669), voltou a declarar inconstitucional o artigo 1º da Lei 8.540/92 que deu nova redação aos artigos 25, incisos I e II, e 30, IV da lei 8.212/91. Segue a ementa:

"CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL PREVIDENCIÁRIA. EMPREGADOR RURAL PESSOA FÍSICA. INCIDÊNCIA SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO. ARTIGO 25 DA LEI 8.212/1991, NA REDAÇÃO DADA PELO ARTIGO 1º DA LEI 8.540/1992. INCONSTITUCIONALIDADE. I — Ofensa ao artigo 150, II, da CF em virtude da exigência de dupla contribuição caso o produtor rural seja empregador. II — Necessidade de lei complementar para a instituição de nova fonte de custeio para a seguridade social. III – RE conhecido e provido para reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 8.540/1992, aplicando-se aos casos semelhantes o disposto no artigo 543-B do CPC. — RICARDO LEWANDOWSKI".

Para a Corte Suprema, a inconstitucionalidade do Funrural estaria na edição de lei ordinária, quando deveria se dar por lei complementar, ao tempo das disposições constitucionais vigentes. Com isso, ficaram os empregadores rurais pessoa física desobrigados da contribuição, bem como aqueles na qualidade de sub-rogados. E a desoneração haveria de se dar desde a edição da Lei 8.212/91, pois lei declarada inconstitucional é lei inexistente e de efeitos "ex tunc".

Assim, por força da inconstitucionalidade tantas vezes declarada do inciso IV do artigo 30 da Lei 8.212/91 e modificações posteriores, os adquirentes, consumidores, consignatários ou cooperativas não têm, não tiveram e não poderão ter responsabilidade, por sub-rogação, pelo recolhimento das contribuições previstas no artigo 25, incisos I e II da mesma lei, nas operações de compra e venda realizadas com empregadores rurais pessoa física e segurados especiais.

Imperioso mencionar ainda que a constitucionalidade do Funrural propriamente dito foi declarada pelo STF no julgamento do RE 718.874/RS, realizado no dia 30/03/2017, em que se reconheceu a constitucionalidade formal e material do Funrural, na forma da Lei 10.256/2001, que o reinstituiu.

Contudo, sobre a responsabilidade do adquirente de reter e repassar a contribuição, ante a inexistência de legislação que o obrigue, havia uma incerteza, sanada em 16/12/2022, no julgamento da ADI 4.395, em que o Supremo Tribunal Federal entendeu  novamente  pela inconstitucionalidade da sub-rogação.

Tal decisão possui imensa relevância ao setor agroindustrial, haja vista que inúmeros contribuintes vêm sofrendo com autos de infração tributária, decorrentes da não retenção dos valores referentes ao Funrural.

Por consequência, os mencionados lançamentos tributários — e a respectiva Certidão de Dívida Ativa (CDA) — originaram processos fiscais, todos apontando desatendimento ao preceito do artigo 30, inciso IV da Lei 8.212/91 e modificações posteriores. Além disso, também processos de cunho criminal foram originados contra o empresário da agroindústria, por incursão em crimes contra a ordem tributária, ante a não retenção e recolhimento da contribuição.

Com efeito, os contribuintes não arrecadaram dos empregadores rurais pessoas físicas as contribuições previstas no artigo 25, incisos I e II da Lei 8.212/91 pelas operações de compra e venda; tampouco recolheram. E assim fizeram por não estarem a tanto obrigados, em razão da inconstitucionalidade tantas vezes declarada do artigo 30, inciso IV da mesma lei.

Por identidade de razões, eventuais autos de lançamento (e respectiva CDA) não se sustentam minimamente nos planos da juridicidade e da legalidade, posto com suporte em dispositivo banido da ordem jurídica desde seu nascedouro. Escusada a obviedade, mas norma inconstitucional é norma inválida, inexistente, no dizer de Pontes de Miranda, por desatender requisitos impostos pela norma maior.

Da mesma forma, não há que se falar em crime quando a tipicidade se encontra calcada em dispositivo inválido.

Ademais, em 2017, o artigo 30, inciso IV, da Lei 8.212/91 teve sua execução suspensa pelo Senado Federal, na Resolução nº 15/2017. Vejamos:

"Artigo 1º É suspensa, nos termos do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução do inciso VII do artigo 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a execução do artigo 1º da Lei nº 8.540, de 22 de dezembro de 1992, que deu nova redação ao artigo 12, inciso V, ao art. 25, incisos I e II, e ao artigo 30, inciso IV, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, todos com a redação atualizada até a Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997, declarados inconstitucionais por decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 363.852".

Na seara jurisdicional, já se identificavam inúmeras decisões no sentido de afastar a obrigação, por sub-rogação, ao recolhimento do tributo relativo ao Funrural. Nesse sentido, vejamos excerto de acórdão altamente ilustrativo:

"(...) Como se percebe, a redação original do texto constitucional previa apenas a contribuição do empregador incidente sobre a folha de salários, faturamento e o lucro, não havendo qualquer previsão quanto à sua incidência sobre o valor da receita bruta. Assim é que a instituição de outras fontes de custeio da seguridade, além daquelas previstas pelo legislador constitucional, exigia a edição de Lei Complementar, nos termos do artigo 154, I da Constituição Federal. Ocorre, contudo, que as Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97 haviam promovido alterações na redação original do artigo 25 da Lei nº 8.212/91, passando a prever a exigência da contribuição sobre a receita bruta, em evidente descompasso com a previsão constitucional que não autorizava tal forma de tributação. Nesse contexto normativo é que o E. STF apreciou os Recursos Extraordinários nº 363.852 e nº 596.177 declarando a inconstitucionalidade das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97, que deram nova redação aos artigos 12, V e VII, 25, I e II, e 30, IV, da Lei nº 8.212/91, até que legislação nova, arrimada na EC nº 20/98, institua a contribuição, desobrigando a retenção e recolhimento da contribuição social ou o recolhimento por subrrogação sobre a 'receita bruta proveniente da comercialização da produção rural' de empregadores, pessoas naturais, orientação mantida por ocasião do julgamento do RE nº 596.177/RS, julgado sob o regime da repercussão geral, nos termos do art. 543-B do CPC.

(...) No que toca à irresignação da agravante relativa ao fundamento legal que legitime o recolhimento por subrogação, tenho que lhe assiste razão. Com efeito, em 13.09.2017 foi publicado no DOU a Resolução Senado Federal nº 15 de 12/09/2017 dispondo o seguinte: (...) Observo que o ato editado pelo Senado Federal encontra fundamento constitucional de validade no artigo 52, X da Constituição Federal que prevê se tratar de competência privativa do Senado Federal a suspensão da 'execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal'. Este é o caso dos autos, vez que, como vimos, o E. STF proferiu decisão publicada em 23.04.2010 'declarando a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98'. Observo, ademais, que tanto na decisão proferida pelo E. STF como no ato editado pelo Senado Federal que, respectivamente, declarou a inconstitucionalidade do dispositivo legal e determinou a suspensão de sua execução não houve qualquer ressalva à manutenção do recolhimento por sub-rogação, daí depreendendo-se que a ordem legal para tal forma de recolhimento se encontra sem fundamento de validade, dado que deixou de produzir efeitos a partir da publicação da Resolução mencionada. Ante o exposto, defiro, parcialmente, o pedido de antecipação da tutela recursal para o fim de desobrigar a agravante ao recolhimento do tributo, na condição de responsável tributária (sub-rogada), nos termos da fundamentação. (...) (Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Agravo de Instrumento 5017947-64.2017.4.03.0000)".

Como se pode observar, o tema é recorrente e muito embora já houvesse inúmeras decisões no sentido da inconstitucionalidade da sub-rogação, o tema restou agora pacificado ante a mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.395.

Nesse sentido, não há norma válida que institua a sub-rogação do Funrural aos adquirentes de produtos agropecuários de empregadores rurais pessoas físicas e segurado especial. Não há, pois, relação jurídico-tributária entre os adquirentes e a União Federal, embasada na retenção das contribuições previstas no artigo 25, incisos I e II, e exigidas por força do artigo 30, inciso IV, todos da Lei 8.212/91.

Resta, então, evidente que a cobrança de tais créditos tributários é inconstitucional. Sendo assim, é indevida a manutenção das execuções fiscais em andamento, tendo em vista que eventual lançamento tributário efetuado com base nessa lei declarada inconstitucional atrai a sua nulidade. Sob a mesma lógica devem ser tratados os processos criminais, visto que não há crime sem lei anterior que o defina.

 


Bibliografia

BRASIL, Lei 8.212 de 24 julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL, Lei 8.540 de 22 de dezembro de 1992. Dispõe sobre a contribuição do empregador rural para a seguridade social e determina outras providências, alterando dispositivos das Leis nºs 8.212, de 24 de julho de 1991 e 8.315, de 23 de dezembro de 1991. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8540.htm. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL, Lei 8.620 de 05 de janeiro de 1993. Altera as Leis nºs 8.212 e 8.213, de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8620.htm. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL, Lei 9.528 de 10 de dezembro de 1997. Altera dispositivos das Leis nºs 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9528.htm. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL, Lei 10.256 de 09 de julho de 2001. Altera a Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, a Lei no 8.870, de 15 de abril de 1994, a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e a Lei no 9.528, de 10 de dezembro de 1997. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10256.htm. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Resolução n. 15 de 12 de setembro de 2017. Disponível: https://legis.senado.leg.br/norma/17763129. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 363.852 MG. Relator ministro Marco Aurélio, 03 de fevereiro de 2010. Disponível: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2071943. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 596.177 RS. Relator ministro Ricardo Lewandowski, 01 de agosto de 2011. Disponível: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2653733&numeroProcesso=596177&classeProcesso=RE&numeroTema=202. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 718.874 RS. Relator ministro Dias Toffoli, 27 de agosto de 2013. Disponível: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4320595. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.395. Relator Gilmar Mendes, 14 de outubro de 2005. Disponível: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3855030. Acesso em 13 jan. 2023.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Agravo de Instrumento N°. 5017947-64.2017.4.03.0000. Relator desembargador Fed. Wilson Zauhy, 18 de dezembro de 2017. Disponível: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/173148567/trf-3-judicial-i-21-12-2017-pg-92. Acesso em 13 jan. 2023.

PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 9ª edição, São Paulo, Saraiva Educação, 2018.


[1] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 9ª edição, São Paulo, Saraiva Educação, 2018. P. 413.

FONTE: CONJUR