Extensão objetiva da coisa julgada: limite contra terceiros processuais

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demonstra a importância da compreensão analítica de certos institutos para a implementação de valores que o direito busca realizar, como é o caso da efetividade e instrumentalidade no processo tributário

"O cindir é desde o início", já nos advertia Pontes de Miranda em seu livro O Problema Fundamental do Conhecimento [1], o que demonstra a importância da compreensão analítica de certos institutos para a implementação de valores que o direito busca realizar, como é o caso da efetividade e instrumentalidade no processo tributário, em especial no campo do preceito constitucional da coisa julgada.

Nesse contexto se insere o objeto temático deste artigo, qual seja, a explicação dos efeitos que determinadas decisões judiciais tributárias produzem sobre situações envolvendo terceiros que não participam da relação jurídica processual (terceiros processuais).

Para facilitar a compreensão do assunto, imagine-se ação promovida pelo contribuinte A em face do ente estatal B cuja decisão ao final acaba afetando o responsável tributário C e/ou ente estatal D, fenômeno esse que, na teoria geral do processo, está ligado ao macrotema jurisdição e à questão dos limites (objetivos e subjetivos) da coisa julgada.

Tomemos por exemplo caso recentemente julgado pela 1ª Turma do STJ no Agravo em Recurso Especial 1.423.187/SP, relatado pelo ministro Gurgel de Faria, julgado em 10/5/2022, que discutiu na origem a seguinte orientação firmada pelo TJ-SP:

"(...) Concessão de liminar em processo movido na justiça goiana que desobrigou as empresas que tratavam com a destinatária final do recolhimento do ICMS nas operações interestaduais de derivados de petróleo. Impossibilidade dos efeitos de tal liminar atingir o Fisco Paulista, vez que este não integrou a lide (art. 472 do CPC/73), de modo a permanecer hígida a autuação lavrada. Responsabilidade da empresa, ora embargante, de arcar com a retenção do imposto devido (CF, art. 150, § 7º). Improcedência dos embargos mantida. (...)" (grifamos).

No caso, liminar concedida em ação ajuizada pela empresa substituída, no estado de Goiás, afastou a retenção do ICMS-ST pela empresa substituta, distribuidora localizada no estado de São Paulo. Posteriormente, o Estado de São Paulo veio a autuar e exigir o ICMS-ST contra a responsável/substituta, sob alegação, em sua defesa aos Embargos à Execução Fiscal, de que não integrou a lide e, portanto, não estaria vinculado à decisão nos termos do artigo 472 [2] do CPC/1973 (atual artigo 506 [3] do CPC/2015).

Tem-se aí dilema recorrente no contencioso tributário relativo aos tributos que, por sua natureza, envolvem a transferência do encargo econômico a terceiros.

São férteis os exemplos, como: ações discutindo o IPI sobre descontos incondicionais ajuizadas por distribuidoras, desobrigando as indústrias do dever de recolhimento; ações tratando do ISS ajuizadas por prestadores de serviços, questionando regras de retenção por tomadores de diferentes municípios; ações de IRRF propostas pelas fontes retidas, afastando o dever de retenção da fonte pagadora; recentemente, tem-se a discussão travada no Tema 1.125 do STJ, relativo à exclusão do ICMS-ST da base do PIS/Cofins pelo substituído, dentre outras.

Em comum a todas essas lides, há de um lado questões relacionadas à legitimidade de partes, usualmente afetas ao interesse de agir (condição da ação [4]), suscitando problemas ligados à formação da coisa julgada material, e, de outro, pontos ligados aos limites objetivos e subjetivos da decisão transitada em julgado.

É sobre esses limites que focamos nossa reflexão, e para tanto retornamos ao voto do ministro Gurgel de Faria no AREsp 1.423.187/SP, no qual foi afirmado:

"Registro, desde logo, a correção da premissa normativa assentada no acórdão recorrido, de que a eficácia subjetiva da coisa julgada se limita às partes, não podendo prejudicar terceiros (art. 506 do CPC/2015), o que revelaria a ineficácia da decisão liminar obtida pelo substituído, que afastou o regime de substituição tributária, perante à Fazenda Pública do Estado de São Paulo, visto que ela não integrou tal lide. Ocorre que, ao meu sentir, esse fundamento não se mostra suficiente para dar a correta solução à controvérsia suscitada no presente caso.

(...) não se poderia exigir da empresa embargante outra conduta diversa do cumprimento da ordem judicial que lhe foi imposta para deixar de proceder à retenção do ICMS/ST referentes às operações de venda de derivados de petróleo às empresas autoras daquela demanda."

Trata-se, sem dúvida, de uma questão de instrumentalidade e efetividade do processo, cuja solução não é afastada pelo teor do artigo 506 do CPC, ao contrário do que pode parecer da leitura do referido acórdão.

Isso porque, há que se diferenciar limites da decisão de mérito, ou seja, do conteúdo normativo da tutela jurisdicional, dos limites da própria coisa julgada enquanto instituto, ou seja, sua forma (ou conformação normativa), uma vez que o mesmo veículo introdutor da norma processual (decisão de mérito) acaba por regular duas relações: (1) imediatamente, a conduta material das partes integradas na relação processual; e (2) mediatamente, a conduta processual do Judiciário [5].

De um lado, a vinculação dos sujeitos processuais sobre os quais repercute o efeito da indiscutibilidade próprio da res judicata que demarca a conduta desses sujeitos, de outro, a vinculação institucional da conduta judiciária, assumindo o papel de norma de estrutura no sentido preconizado por Paulo de Barros Carvalho [6], isto é, aquela demarcatória da forma de produção de novos comandos normativos.

Dessa forma, no caso tomado como exemplo, ainda que o estado de São Paulo não tenha composto a lide no feito originário transitado em julgado, não pode o Poder Judiciário paulista (re)discutir a mesma questão já decidida. E isso não por conta dos limites subjetivos da coisa julgada, senão em razão da sua própria e inerente porção objetiva, tal qual prevista no artigo 503 do CPC, que leva à impossibilidade de rediscussão, pelo Poder Judiciário, de questão já decidida [7].

Não fosse assim, comprometer-se-ia a unidade do Poder Judiciário enquanto instituição, permitindo-se reexames e revisões, a pretexto da ineficácia subjetiva da decisão.

Daí a importância das premissas analíticas interagindo com a instrumentalidade e efetividade do processo, conforme bem decidido pelo STJ.

 


[1] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. Porto Alegre: Globo, 1937.

[2] "Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros."

[3] "Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros."

[4] Acerca desse tema, remetemos o leitor ao seguinte artigo desta coluna: "Repetição de indébito no contexto dos tributos indiretos: o artigo 166 do CTN" - https://www.conjur.com.br/2021-jun-13/processo-tributario-repeticao-indebito-contexto-tributos-indiretos.

[5] Nesse sentido: "enquanto a decisão de mérito vincula materialmente a conduta das partes, a coisa julgada vincula processualmente a conduta dos órgãos do Poder Judiciário.” (PRIA, Rodrigo Dalla. “Direito Processual Tributário". São Paulo: Noeses, 2020, p. 576).

[6] In "Curso de Direito Tributário". 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

Por Rodrigo G. N. Massud 

 

FONTE: CONJUR