Compensação de ofício e semântica em matéria tributária

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A resposta a essa pergunta certamente seria capaz de solucionar verdadeira encruzilhada jurídica em que se encontram contribuintes com créditos tributários a ser restituídos pelo Fisco e, ao mesmo tempo, débitos garantidos e em discussão judicial.

"A lei não contém palavras inúteis" é mais que um brocardo jurídico. Representa, a bem da verdade, verdadeiro princípio basilar de hermenêutica jurídica. Porém, será a semântica capaz de se sobrepor à lógica jurídica e a tantos outros princípios que sustentam nosso ordenamento jurídico?

A resposta a essa pergunta certamente seria capaz de solucionar verdadeira encruzilhada jurídica em que se encontram contribuintes com créditos tributários a ser restituídos pelo Fisco e, ao mesmo tempo, débitos garantidos e em discussão judicial.

Isso porque, fundamentado no brocardo acima, os Tribunais Superiores firmaram posicionamento no sentido de que, no âmbito federal, somente débito com exigibilidade suspensa poderia ser afastado da compensação de ofício pretendida pela Receita Federal [1].

Para o STJ [2], admite-se a legalidade dos procedimentos de compensação de ofício, desde que os créditos tributários em que foi imputada a compensação não estejam com sua exigibilidade suspensa em razão do ingresso em algum programa de parcelamento, ou outra forma de suspensão da exigibilidade prevista no artigo 151, do CTN, ressalvando que a penhora não é forma de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

Ou seja, somente as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, taxativamente enumeradas no artigo 151, do CTN, quais sejam: moratória; depósito do montante integral do débito fiscal; reclamações e recursos administrativos; concessão de liminar em mandado de segurança; concessão de liminar ou de antecipação de tutela em outras espécies de ação judicial; e parcelamento, impedem a prática de atos de cobrança pelo Fisco [3].

Aqueles débitos que, muito embora estejam integralmente garantidos em sede de execução fiscal, e defendidos por meio de embargos à execução recebidos com efeitos suspensivo, não seriam, pois, capazes de impedir a compensação de ofício.

Na análise do REsp 1.213.082/PR (Leading case), o ministro Mauro Campbelll afirmou que "a exigibilidade não foi dispensada para os créditos tributários, que deverão ser sempre certos, líquidos e exigíveis para participarem de uma compensação" e ressaltou o seguinte:

"Diz o Código Tributário Nacional (CTN) (Lei nº 5.172/66) que a lei pode autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo. In litteris:
Artigo 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública. (Vide Decreto nº 7.212, de 2010)
Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento."

Certa é a obrigação a respeito da qual não paira dúvida sore sua existência. Líquida é a obrigação certa quanto a sua existência e determinada quanto ao seu objeto. Vencida é a obrigação que já pode ser exigida, ou seja, exigível. Regra geral, a compensação somente pode ocorrer entre dívidas certas, líquidas e exigíveis, tal é a disciplina do artigo 369, do Código Civil de 2002 (antigo artigo 1010, do CC/16) ao estabelecer que a compensação se efetua entre dívidas líquidas e vencidas. Veja-se:

"Artigo 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis."

E o STF [4], por sua vez, na mesma linha entende que, a compensação de ofício não viola a liberdade do credor e que o suporte fático da compensação prescinde de anuência ou acordo, perfazendo-se ex lege, diante das seguintes circunstâncias objetivas: 1) reciprocidade de dívidas, 2) liquidez das prestações, 3) exigibilidade dos débitos e 4) fungibilidade dos objetos.

No entanto, em que pese se compreenda a fundamentação acima, nos parece faltar logicidade na conclusão. Afinal, o débito garantido, e cuja execução fiscal está suspensa por força dos embargos à execução fiscal recebidos com efeitos suspensivos, não pode ser objeto de novos atos coercitivos tendentes à sua cobrança. Assim como, autoriza a expedição de certidão positiva com efeitos de negativa, nos termos do artigo 206 do CTN.

Ou seja, não se está diante de obrigação certa, líquida e exigível, assim como fundamentou o STJ.

Não há certeza e nem liquidez dos débitos, visto que a sua origem está sendo objeto de defesa judicial; há, ainda, garantia que assegure a sua quitação no caso de a Fazenda lograr vencedora; e, não é exigível, posto que a sua execução está suspensa por meio do recebimento da defesa com efeito suspensivo.

Vê-se, pois, que a situação de enquadra perfeitamente naqueles fundamentos em que se basearam os Tribunais Superiores para firmar o posicionamento, faltando-lhe apenas o aparato semântico no qual não a execução fiscal esteja suspensa, mas sim o débito tributário.

É evidente, no entanto, a semelhança entre a decisão que recebe os embargos à execução fiscal com efeitos suspensivos da previsão contida no inciso V, do artigo 151 do CTN — sendo, pois, a hipótese em apreço muito mais do que uma discussão jurídica, uma discussão semântica.

Discussão essa que acaba por embasar atos exorbitantes por parte do Fisco Federal que se utiliza da compensação de ofício para coagir os contribuintes ao pagamento de débitos garantidos e em discussão judicial.

Não bastasse todos os privilégios que detém o Fisco na execução de seus créditos, é evidente que a compensação de ofício na hipótese precitada onera os contribuintes na medida em que frusta o seu direito de acesso à Justiça, impede o exercício pleno do seu direito de defesa e, ainda, põe o contribuinte em eterno ciclo vicioso de aplicação da cláusula solve et repete (que significa pague e depois reclame), já há muito repudiada por ferir o princípio da segurança jurídica nas relações tributárias.

É evidente que essa situação põe em risco a eficácia do devido processo legal e a garantia constitucional de acesso à Justiça.

Nessas hipóteses, recomenda-se, então, aos contribuintes que utilizem do pedido de Tutela de urgência Incidental [5] para pleitear ao Juízo da Execução Fiscal seja expressamente deferida a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo inciso V, do artigo 151, CTN de modo que seja impedida a compensação de ofício e assegurada a efetividade dos atos praticados nos autos do processo, com vias a comprovar a inexistência do débito.


[1] A compensação de ofício no âmbito federal possui previsão no artigo 73 da Lei n° 9.430/1996, no artigo 7º do Decreto-Lei nº 2.287/1986, e no artigo 3° do Decreto nº 2.138/1997. É um 'encontro de contas' e se caracteriza pelo enquadramento simultâneo do contribuinte nas categorias de credor e devedor de tributos.

[2] Tema 484 do STJ (Resp 1213082/PR  Analisou a possibilidade de retenção de valor a ser restituído/ressarcido quando o contribuinte manifesta a sua discordância em procedimento de compensação de ofício previsto no artigo 73, da lei nº 9.430/96 e artigo 7º, do decreto-lei nº 2.287/86. Firmando-se a tese de que 'Fora dos casos previstos no artigo 151, do CTN, a compensação de ofício é ato vinculado da Fazenda Pública Federal a que deve se submeter o sujeito passivo, inclusive sendo lícitos os procedimentos de concordância tácita e retenção previstos nos §§1º e 3º, do artigo 6º, do Decreto nº 2.138/97'. E 'É ilegal a compensação de ofício apenas quando o crédito tributário a ser liquidado se encontrar com a exigibilidade suspensa'".

[3] Artigo 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

I - moratória;

II - o depósito do seu montante integral;

III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança.

V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial;               

VI – o parcelamento. 

[4] Tema 874 do STF (RE 917285)  Analisou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 73 da Lei 9.430/1996, com a redação dada pela Lei 12.844/2013, que prevê a possibilidade de o Fisco, aproveitando o ensejo da restituição ou do ressarcimento de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, proceder à compensação, de ofício, com débitos não parcelados ou parcelados sem garantia. Firmando-se a tese de que “É inconstitucional, por afronta ao artigo 146, III, b, da CF, a expressão “ou parcelados sem garantia”, constante do parágrafo único do artigo 73, da Lei nº 9.430/96, incluído pela Lei nº 12.844/13, na medida em que retira os efeitos da suspensão da exigibilidade do crédito tributário prevista no CTN.

[5] Prevista no artigo 294 e seguintes do CPC.

Fonte: CONJUR