Contencioso tributário: a liquidação prematura do seguro garantia

Últimas Notícias
No Brasil, é inequívoco que o contencioso tributário estimula insegurança jurídica

 No Brasil, é inequívoco que o contencioso tributário estimula insegurança jurídica e afasta investimentos ao país. Até 2019, ao menos R$ 5,4 trilhões eram alvo de cobranças fiscais em processos judiciais e administrativos, conforme dados levantados pelo núcleo de tributação do Insper [1]. O valor representava, naquele ano, 75% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

O cenário patológico descrito se evidencia de forma ainda mais clara na esfera judicial, de modo a responder por 74% do estoque do contencioso total, ao somar R$ 4,01 trilhões discutidos em processos no ano de 2019.

Dentre as inúmeras disputas em âmbito judicial, uma controvérsia relativamente simples causa perplexidade e extrema insegurança pelos danos causados aos contribuintes e pelos valores envolvidos, de modo que poderia ser dirimida pelos poderes Judiciário ou Legislativo. Trata-se da liquidação do seguro garantia antes do trânsito em julgado dos embargos à execução. Trata-se da liquidação do seguro garantia antes do trânsito em julgado dos embargos à execução.

Como se sabe, a Lei nº 13.043/2014 possibilitou que os feitos executivos fossem garantidos mediante apólices de seguro garantia. Em razão dos menores custos envolvidos com a manutenção dessa espécie de garantia, diversos contribuintes passaram a utilizá-la para garantir débitos em cobrança judicial pela Fazenda Pública.

Todavia, pouco após a introdução legislativa e a oferta de seguros garantias em executivos fiscais, a Fazenda Pública passou a pleitear a liquidação antecipada dessas garantias diante de sentenças de improcedência em sede de embargos à execução fiscal. Tal postura seria justificada, em seu entendimento, em decorrência da previsão dos artigos 919 e 1.012, parágrafo 1º, III, ambos do Código de Processo Civil (CPC), que preveem o efeito meramente devolutivo do recurso de apelação em sede de embargos à execução.

Assim, embora a legislação tenha previsto garantia de feitos executivos fiscais mediante seguro garantia, os contribuintes passaram a ser surpreendidos com pedidos de liquidação antecipada da garantia e o consequente depósito do valor segurado nos autos tão logo prolatada sentença de improcedência, ainda que pendente de julgamento do recurso de apelação.

Diante dessas tentativas, os contribuintes passaram a lançar mão de uma série de argumentos pautados na legislação e princípios inerentes às execuções fiscais para garantir a manutenção da garantia até o trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal.

De pronto, sobressai o artigo 9º, parágrafo 3º, da Lei nº 6.830/1980, também conhecida como a Lei de Execuções Fiscais (LEF), o qual estabelece que a garantia da execução fiscal por meio de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia produz os mesmos efeitos da penhora. Em outras palavras, todas essas espécies de garantia seriam equiparáveis para fins de caução da execução fiscal, conforme entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) [2].

Portanto, diante dessa previsão, parece-nos desarrazoado e desproporcional a conversão do seguro garantia em depósito, caracterizando verdadeira penhora antes do trânsito em julgado dos embargos à execução.

Soma-se a isso o fato de que o Fisco federal adota postura agressiva para forçar a entrada de recursos em caixa, a qual acaba por simplesmente descaracterizar a possibilidade de garantia por seguro. Isto porque o artigo 32, parágrafo 2º, da LEF, veda o levantamento de depósito judicial antes do trânsito em julgado dos embargos de devedor.

Além disso, os processos de execução são regidos pelo princípio da menor onerosidade ao devedor, nos termos do artigo 805 do CPC. Isto é, quando a execução puder se dar por diversos meios, o magistrado deverá determinar que o seja pelo meio menos gravoso ao executado.

Assim, alegam os contribuintes que em razão da ausência de prejuízo à Fazenda Pública e o grave prejuízo que lhes serão imputados caso seja necessário o depósito de valor já garantido pelo seguro garantia aceito pelo ente público anteriormente, seria necessário aguardar o trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal antes da liquidação da garantia.

Embora essas discussões tenham sido cada vez mais recorrentes no Judiciário, a jurisprudência ainda não se consolidou quanto ao tema.

Isto porque, enquanto o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) se posiciona pela possibilidade de liquidação antecipada do seguro garantia quando for proferida sentença de improcedência dos embargos à execução, todos os demais tribunais regionais federais (TRFs) da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Regiões possuem jurisprudência dominante em sentido contrário [3].

No âmbito dos tribunais de justiça estaduais, o posicionamento dos tribunais de São Paulo (TJ-SP), Rio de Janeiro (TJ-RJ), Minas Gerais (TJ-MG), Bahia (TJ-BA) e Rio Grande do Sul (TJ-RS) também são contrários à liquidação antecipada do seguro garantia previamente ao trânsito em julgado dos embargos. Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) segue o entendimento do TRF-3 pela legalidade da liquidação antecipada do seguro garantia [4].

O STJ ainda não analisou especificamente a controvérsia acerca da legalidade da liquidação antecipada do seguro garantia, mas possui entendimentos conflitantes que autorizam e vedam a liquidação da fiança bancária antes do trânsito em julgado dos embargos à execução [5].

Diante desse cenário, observa-se que o fundamento utilizado pelos tribunais para autorizar a liquidação antecipada do seguro garantia busca afastar a sua equiparação com a conversão em renda dos valores a favor da União, de modo a sustentar que os valores permanecem à disposição do juízo via depósito e somente são levantados com o trânsito dos embargos.

Todavia, esse posicionamento merece uma reflexão mais profunda acerca dos reflexos e impactos negativos que a liquidação pode ocasionar ao contribuinte. Isto porque, a partir do momento em que o juízo determina a intimação da seguradora para depositar judicialmente o valor contemplado pela apólice, resta caracterizado o sinistro do seguro, de modo que o contribuinte terá que arcar igualmente com o pagamento do valor à seguradora com todos os acréscimos contratuais.

Muitas vezes, esses valores são substanciais e podem causar impacto direto à atividade do contribuinte, de modo que, em termos práticos, a liquidação antecipada do seguro garantia é claramente equiparável à penhora.

Além disso, mesmo com a prolação de uma sentença de improcedência, eventual entendimento pode vir a ser revertido tanto pelo tribunal de segunda instância, como futuramente por um tribunal superior (STJ ou STF).

Como dito, o seguro garantia é uma modalidade de caução fiscal utilizada pelos contribuintes em razão de causar menor oneração e impacto à vida financeira da empresa. Em um país com uma realidade de completa desordem fiscal, nada mais justo e razoável aguardar, ao menos, o desfecho final do litígio judicial para se autorizar o pagamento do valor devido.

A questão acima poderia ser efetivamente pacificada pelo STJ através da análise de um recurso repetitivo sobre a matéria, e tal situação traria, naturalmente, maior segurança a toda a comunidade jurídica acerca dessa questão.

Não obstante, caso o Poder Judiciário não enfrente a questão no curto e médio prazo, o tema pode vir a ser enfrentado pelo Poder Legislativo. Isso porque há diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam a normatizar a discussão.

A título exemplificativo, o PLC 160/2021, em trâmite na Câmara dos Deputados, apensado ao PLP 142/2007, trata da inclusão da fiança bancária e do seguro garantia entre as hipóteses de suspensão de exigibilidade do crédito tributário (artigo 151 do Código Tributário Nacional). Referido projeto aguarda análise pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

Aprimoramentos a serem observados podem ser realizados no artigo 32 da Lei de Execução Fiscal para inclusão de um parágrafo que registre expressamente a possibilidade de liquidação do seguro garantia e da fiança bancária ofertados em garantia ao juízo da execução fiscal somente após o trânsito em julgado da sentença prolatada em embargos à execução.

Tal medida auxiliaria, de forma extremamente pragmática, a resolver um contencioso que hoje é impertinente e desnecessário aos interesses do país de estimular segurança jurídica e atrair investimentos.

 


[1] Núcleo de Tributação do Insper. Contencioso Tributário no Brasil. Relatório 2020, ano de referência 2019. São Paulo. Disponível em:

https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/01/Contencioso_tributario_relatorio2020_vf10.pdf

[2] Recurso Especial nº 1.033.545, rel. Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 28/4/2009.

[3] A título meramente exemplificativo – TRF-1, Proc. nº 0024753-36.2012.4.01.0000 (data: 19/11/2018); TRF-2, Proc. n. 0011775-87.2018.4.02.0000 (data: 16/12/2019); TRF-3, Processo n. 5028481-62.2020.4.03.0000 (Data: 12/3/2021); TRF4, AG nº 5002999-51.2021.4.04.0000 (data: 19/3/2021); TRF5, Proc. nº 0813649-90.2018.4.05.0000 (data: 31/1/2019).

[4] A título meramente exemplificativo – TJ-BA, AI: 80114372320198050000 (data: 3/12/2019); TJ-MG, Processo nº 1.0000.20.516382-7/004 (data: 19/8/2021); TJ-RJ, AI 0001602-31.2017.8.19.0000 (data: 27/4/2017); TJ-RS, AI 70080859564 (data: 23/5/2019); TJ-SP, AI 2103434-39.2021.8.26.0000 (data: 23/6/2021); TJ-PR, Proc. nº 0042399-28.2020.8.16.0000 (data: 15/3/2021); Proc. nº 0033774-05.2020.8.16.0000 (data: 8/3/2021).

[5] Precedentes pela legalidade da liquidação antecipada da fiança bancária: (1) AgRg na MC nº 19.565/RJ, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 4/9/2012, DJe de 11/9/2012; (2) AgRg na MC n. 18.155/RJ, relator ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 4/8/2011, DJe de 16/8/2011; (3) AgInt no AREsp n. 1.646.379/RJ, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 21/9/2020, DJe de 1/10/2020. Precedentes pela ilegalidade da liquidação da fiança bancária antes do trânsito em julgado dos embargos: (1) AgRg no RESP nº 1.254.985, rel. ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJ 6/3/2012; (2) REsp nº 1.678.730/RO, relator ministro Mauro Campbell Marques, J. 1/8/2017; (iii) AgRg no Ag 1.317.089/PE, 1ª Turma, rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 22/4/2014; (4) AgRg no AREsp 123.976/RS, rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 26/06/2012, DJe 1/8/2012; (v) REsp 1.033.545/RJ, rel. ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 28/4/2009, DJe 28/5/2009; (6) Recurso Especial nº 1.033.545, rel. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 28/5/2009.

FONTE: CONJUR