DIRETO DO CARF: Lei nº 14.689/23: voto de qualidade, multas e retroatividade

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O Carf tem sido objeto de muitas discussões, sendo que a principal delas tem relação com a forma de solução da controvérsia no caso de empate de votos dos julgadores

 O Carf tem sido objeto de muitas discussões, sendo que a principal delas tem relação com a forma de solução da controvérsia no caso de empate de votos dos julgadores [1]. Depois de muitas idas e vindas legislativas, parece que finalmente temos a estabilização do tema, com a recente publicação da Lei nº 14.689/23.

Façamos um breve retrospecto, para que possamos avançar na interpretação da novel legislação, em especial à possibilidade do cancelamento ou redução de multa nos processos em curso ou findos.

Diante da realidade ínsita ao sistema paritário, com o número par de conselheiros nos colegiados do Carf (cf. artigo 25, II do Decreto 70.235/72), é possível que o julgamento do recurso de ofício ou voluntário termine em empate. O artigo 25, §9º do PAF, desde a sua redação original, resolve o resultado do julgamento a ser dado nessa hipótese: o voto do presidente do colegiado (representante da Fazenda Nacional) tem qualidade, de modo que ele, por seu voto, é que ditará a decisão final do colegiado [2].

Essa situação não gerava grande controvérsias até 2015. Porém, com a reformulação do Carf ali ocorrida, e consequente transformação do perfil do tribunal, viveu-se uma mudança abrupta de jurisprudência consolidada por meio de votos de qualidade a favor da Fazenda Nacional, que passaram a ser mais comuns, em especial para as grandes teses tributárias e, mais especialmente ainda, no âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais.

O descontentamento do setor privado diante desse cenário foi refletivo no advento do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, trazido pela Lei nº 13.988/2020. Segundo esse dispositivo, o empate no Carf passava a ser resolvido favoravelmente ao contribuinte, de forma automática.

Interpretando restritivamente os termos do novel dispositivo, a Portaria MF nº 260/2020 estabeleceu que esse desfecho se aplicava apenas nos casos em houvesse determinação e exigência do crédito tributário, deixando clara a resistência dos órgãos fazendários com a nova regra [3].

Todavia, seguindo esse preocupante movimento pendular, a questão foi novamente alterada com a publicação da MP nº 1.160/2023, revogando o citado artigo 19-E e, portanto, restabelecendo o voto de qualidade.

Nesse ínterim a OAB ajuizou a ADI nº 7.347, contestando a constitucionalidade da MP 1.160/2023. Alegava, em síntese, tratar-se de veículo legislativo inadequado para o tratamento do tema, o qual deveria ocorrer por meio de lei em sentido estrito. Ademais, levantava o princípio in dubio pro contribuinte (artigo 112 do CTN), que deveria ser aplicado para caso de empate, por tratar-se de hipótese de dúvida a respeito da autuação fiscal submetida ao contencioso.

Em 01/06/2023 ocorreu a perda de vigência da MP 1.160/2023, reestabelecendo os efeitos da Lei nº 13.988/2020, ou seja, o empate dando ganho de causa aos contribuintes no Carf, mas com as limitações da já citada Portaria MF nº 260/2020.

Esta celeuma resultou num acordo noticiado entre Conselho Federal da OAB, Ministério da Fazenda, PGFN, e advogados especialistas, propondo uma medida "intermediária” para cuidar do tema, a qual foi incorporada ao PL do Carf (PL 2.384/2023). Esse PL propôs a revogação do artigo 19-E, voltando às origens do PAF, vale dizer, o empate resolve-se pelo voto de qualidade, mas saindo o contribuinte perdedor com relação ao mérito, ocorreria o cancelamento das penalidades.

Em 20 de setembro de 2023 finalizou-se o trâmite legislativo do PL 2.384, sendo publicada a Lei nº 14.689/23, definindo em seu artigo 1º que na hipótese de empate na votação, os resultados dos julgamentos no Carf serão proclamados nos termos do artigo 25, § 9º do Dec. 70.235/72, ou seja, mediante o voto de qualidade.

Ademais, a lei promoveu outras alterações e algumas inovações. Dentre as modificações promovidas pela lei, observa-se que foram estabelecidos efeitos decorrentes do voto de qualidade em favor da Fazenda Nacional, que nada mais são que as "medidas intermediárias" mencionadas alhures. Para citar alguns exemplos: 1) o artigo 25-A, introduzido no Decreto 70.235/72, prevê que serão excluídos os juros de mora (Selic) [4], incidentes sobre o valor julgado em desfavor do contribuinte, desde que ele manifeste sua intenção de pagamento no prazo de 90 dias do julgamento; 2) o §1º do mesmo artigo define que o pagamento indicado no caput pode ser realizado em até doze parcelas; 3) já o §3º dispõe que o sujeito passivo pode usar para pagamento créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa, de sua titularidade ou de empresa ligada [5], para liquidação dos débitos tributários oriundos da citada decisão; 4) e o §10 permite o uso de precatórios para amortização ou liquidação do remanescente.

Apesar do texto ser a princípio claro para as situações supratranscritas, surgem dúvidas no que tange às multas aplicáveis aos processos em curso ou findos.

Para resolvê-las, essencial desde já destacar que temos duas situações diferentes com relação às multas no contexto da Lei nº 14.689/2023, as quais devem ser analisadas separadamente.

primeira delas é a tão aguardada disposição trazida pela Lei n. 14.689/23, qual seja, o §9º-A no artigo 25 no Dec. 70.235/72. O referido parágrafo determina que quando o julgamento for definido pelo voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, as multas serão excluídas e a representação fiscal para fins penais será cancelada. Levando-se em conta que a multa de ofício corresponde a 75% do valor do tributo não pago (podendo chegar a 150% se qualificada, e 225% se agravada), o empate pode representar uma significativa redução dos montantes devidos aos cofres públicos. Essa nova regra aplica-se não só aos contribuintes que estejam aguardando o julgamento de seus recursos no Carf — aos quais automaticamente será aplicada a nova norma vigente —, mas também alcança aqueles que já tiveram um julgamento desfavorável por meio do voto de qualidade antes da vigência da nova lei. Isto porque, ela mesma prevê, em seu art. 15, que a exclusão da multa e o cancelamento da representação são aplicáveis a casos já julgados pelo Carf e com mérito não apreciado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) competente. Tal situação se dá no caso do contribuinte que perdeu o julgamento no Carf por meio de voto de qualidade e resolveu levar a questão ao Poder Judiciário. Ainda, a mesma regra de cancelamento da multa foi estendida, pelo artigo 16 da 14.689/23, para aqueles que perderam o julgamento por voto de qualidade durante a vigência da MP nº 1.160/23.

Por um lado, a regra merece aplausos. Afinal, o legislador, ciente da instabilidade que viveram os contribuintes nos últimos três anos e meio, causando grave falta de isonomia e segurança jurídica — por certo afetando também questões concorrenciais —, foi além da regra básica sobre a aplicação da lei processual no tempo, prevista no art. 14 do Código de Processo Civil, quando impõe que "a norma processual não retroagirá". Decidiu-se que deve sim haver a retroação, nos específicos termos supra descritos [6].

De outro lado, a limitação em relação ao momento processual definido pela Lei 14.689/2023 pode ser questionada. Por que a exclusão da penalidade se aplicaria somente antes do julgamento no respectivo TRF? Sabe-se que a problemática do voto de qualidade se dá em casos em que discutem teses jurídicas específicas, e não matéria probatória. Dessarte, dependendo da discussão, ela pode chegar ao STJ ou ao STF para dirimir conflitos sobre a interpretação da legislação federal ou da constitucionalidade da lei, momento em que seria absolutamente compatível com o sistema jurídico a aplicação do artigo §9º-A no artigo 25 no Decreto 70.235/72.

Feita tal ponderação, vejamos a segunda situação importante relativamente às multas.

A Lei nº 14.689/2023, para além da questão do voto de qualidade, trouxe inovações com relação ao tema das multas aplicáveis em matéria fiscal federal [7], ao alterar o texto da Lei nº 9.430/96.

Doravante, a multa qualificada — vale dizer, a multa majorada em razão da presença de elemento de sonegação, fraude ou conluio na conduta do contribuinte, nos termos previstos nos artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/1964 — deve ser lançada no montante de 100% sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício. Somente se chegará ao antigo patamar em 150% no caso de reincidência.

Com efeito, antes da alteração ora em análise, previa o artigo 44 da Lei nº 9.430/96, com redação dada pela Lei nº 11.488, de 2007, que a multa qualificada no âmbito federal seria imputada no montante de 150% do tributo apurado, por força da duplicação da multa regular de ofício (de 75%) aplicável aos autos de infração lavrados pela Receita Federal do Brasil. Repita-se, tudo nos termos da antiga redação do artigo 44, inciso I da Lei nº 9.430/96.

No entanto, com o advento da Lei nº 14.689/2023, foi alterada a redação dos dispositivos supracitados. Vê-se que, de fato, nos autos de infração lavrados posteriormente à publicação da Lei nº 14.689/2023, caberá à autoridade fiscal averiguar se o contribuinte incorre na hipótese de reincidência — descrita na nova legislação como ação dolosa do contribuinte no prazo de dois anos desde a última autuação fiscal —, e, se for esse o caso, aplicará a multa qualificada no montante de 150% do débito lançado.

Do contrário, vale dizer, em não sendo o caso de reincidência, aplicar-se-á a multa conforme sua regra geral de qualificação, por força da ocorrência de fraude, conluio ou sonegação (artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/1964), no montante correspondente a 100% do valor devido a título de tributo.

Deste cenário, depreende-se que a antiga multa de 150%, qualificada em razão da constatação de conduta dolosa do contribuinte (artigo 44, §1º, VI da Lei nº 9.430/96), foi, como regra geral, reduzida para 100%. A sua aplicação em 150% depende agora de ônus argumentativo-probatório quanto a citada reincidência do autuado.

Pois bem. É consabido que a regra geral que vige no direito é da irretroatividade das leis (artigos 5º, XXXVI e 150, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal), primado esse fundamental para que reine a segurança jurídica do sistema. Essa é a lógica básica do direito, do tempus regit actum, segundo o qual a norma que deve ser objeto de subsunção ao fato social por ela disciplinado é aquela vigente nas coordenadas de espaço e tempo de sua ocorrência.

Todavia existem situações particulares, nas quais o próprio ordenamento jurídico entende que o direito deve alcançar fatos passados.

No Direito Tributário, na mesma toada que se vê no direito penal, o inciso II, do artigo 106, do CTN determina que exsurgindo nova lei que comine penalidade mais benéfica ao infrator, do que aquela vigente no momento da ocorrência do fato gerador da penalidade, essa nova lei deve ser aplicada a fato pretérito, quando se tratar de ato não definitivamente julgado. Esse dispositivo é amplamente aplicado, tanto em sede de contencioso administrativo como judicial, sempre reconhecendo o direito dos contribuintes a terem a penalidade lançada diminuída, aplicando a novel legislação mais benéfica.

Com efeito, na jurisprudência do STJ são diversos os precedentes nesse sentido [8]. Igualmente a jurisprudência do Carf é uniforme acerca da aplicação do artigo 106, II, "c" do CTN [9].

Assim, na hipótese de existência de processo pendente de julgamento, seja administrativa ou judicialmente, tendo como origem auto de infração ora lavrado com base na regra geral de qualificação (artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502), a nova regra mais benéfica deve ser aplicada retroativamente, nos termos do citado artigo 106, II "c" do CTN, sendo reduzida ao patamar máximo de 100% do valor do tributo cobrado. Isso, lembre-se, independentemente de qualquer relação com o voto de qualidade.

Finalmente, cumpre ressaltar que não se pode retroagir a averiguação da reincidência aos processos em curso. Afinal, isto implicaria em se refazer os autos de infração — ato administrativo vinculado aos elementos de fato e de direito verificados durante o procedimento de fiscalização e trazidos na motivação apresentada pela autoridade pública —, o que desvirtuaria todo o contencioso administrativo, reiniciando um PAF por novo critério jurídico e suprimindo contraditório e ampla defesa, ou seja, desrespeitando a Constituição (artigo 5º, LV), o CTN (artigos 142 e 146) e a Lei nº 9.784/1999 (artigo 2º, VIII).

Para concluir, das novidades trazidas pela Lei nº 14.689/2023 relativamente aos temas do voto de qualidade, multas e retroatividade, temos as seguintes situações a serem observadas pelos contribuintes e órgãos julgadores: 1) em caso de decisão final pelo voto de qualidade, o cancelamento integral das multas (1.a) nos julgamentos futuros (posteriores a 20/9/2023), (1.b) naqueles ocorridos entre 12/1/2023 e 01/6/2023 (vigência da MP 1160/2023), (1.c) e naqueles casos finalizados no Carf e que foram judicializados, desde que o mérito ainda não tenha sido apreciado pelo respectivo TRF; 2) independentemente de qualquer relação com o voto de qualidade, o patamar da multa de ofício qualificada que será observado doravante nos lançamentos tributários será de 100% nos casos de conluio, fraude ou sonegação, sendo que por força da retroatividade benigna, esse novo teto deve ser aplicado aos casos pendente de julgamento seja no contencioso administrativo ou judicial.

 

 


[2] O que não necessariamente implicava a manutenção do crédito tributário lançado. A decisão do presidente poderia promover o desempate em favor do administrado.

[3] O ato normativo impôs, assim, limitações à regra de desempate, como sua inaplicabilidade aos responsáveis tributários, aos processos de restituição/ressarcimento e à matéria aduaneira.

[4] Nos termos do art. 13 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995.

[5] Controladora ou controlada, de forma direta ou indireta, ou de sociedades que sejam controladas direta ou indiretamente por uma mesma pessoa jurídica.

[6] Talvez o legislador tenha partido da ideia que a regra que disciplina o voto de qualidade tenha uma natureza híbrida, conforme também já fora anteriormente defendido nesta coluna por outros articulistas: ConJur - O artigo 19-E da Lei 10.522 e sua retroatividade.

[7] Além de tratar dos novos limites da transação e incentivo à conformidade, os quais, porém não são objeto de nossa análise nessa oportunidade.

[8] Resp 824.655/SE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Órgão julgador Primeira Turma, Data do julgamento 16/05/2006, Data da publicação/fonte Dj 25/05/2006 p. 197 e Resp 649.699/SP, Rel. Min. Denise Arruda, Órgão Julgador Primeira Turma, Data do julgamento 11/4/2006, Data da publicação/fonte dj 15/5/2006 p. 164.

[9] Acórdão nº 9101¬001.676. Acórdão 3402-008.315 e Acórdão n. 2401-002.261.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2023, 8h00