OPINIÃO: Tusd e Tust na base do ICMS: façam suas apostas

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Dentre os temas que vêm gerando grande repercussão no direito tributário, merece destaque a liminar concedida pelo ministro Luiz Fux e acompanhada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal

 Dentre os temas que vêm gerando grande repercussão no direito tributário, merece destaque a liminar concedida pelo ministro Luiz Fux e acompanhada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.195, que resultou na suspensão dos efeitos do artigo 2º da Lei Complementar n. 194, de 23 de junho de 2022 (LC nº 194/2022), na parte que altera o inciso X do artigo 3º da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), excluindo da incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) cobrado sobre o consumo de energia elétrica o valor relativo aos serviços de transmissão e distribuição bem como aquele correspondente aos encargos setoriais denominados Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) e Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (Tust).

Com a decisão, retomou-se a cobrança das referidas tarifas na base do referido imposto estadual.

O tema ainda há de ser julgado em caráter definitivo pelo STF e não se descarta a possibilidade de "o jogo virar", mas enquanto isso não acontece, trazemos um breve resumo do contexto judicial da discussão e uma análise cuidadosa dos argumentos utilizados pelo ministro Luiz Fux para que possamos refletir sobre os rumos que o tema assumiu e tentarmos refletir tecnicamente sobre sua (in)coerência com o nosso sistema jurídico tributário.

 

Histórico do debate judicial
O tema da incidência da Tusd e da Tust na base do ICMS tem sido objeto de debates por um longo período. A partir do momento que os contribuintes passaram a acionar o poder judiciário pleiteando a sua exclusão, os tribunais espalhados pelo Brasil começaram a expedir variadas decisões: alguma contrárias, outras favoráveis à tese. As decisões favoráveis, em sua maioria, determinavam a suspensão da cobrança, bem como a devolução dos valores indevidamente recolhidos nos últimos cinco anos.

O fato, de contribuintes na mesma situação, receberem decisões em sentidos diferentes, acarretou extrema insegurança jurídica, além de ferir o princípio da isonomia (uma vez que enquanto alguns contribuintes saíram vitoriosos ao acionar o judiciário, outros não).

Devido a alta demanda judicial da temática, foram instaurados Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) em vários tribunais de justiça do Brasil.

As tramitações dos IRDRs foram, no entanto, suspensas, em razão da afetação do tema pelo STJ, em julgamento de recurso especial realizado sob o rito dos recursos repetitivos (Tema nº 986 de relatoria do ministro Herman Benjamin), que determinou a suspen­são da tramitação de processos que versassem sob o tema em questão, em todo território nacional.

Em 23 de junho do 2022, foi publicada a Lei Complementar nº 194/2022 (LC 194/2022), responsável por promover alterações no Código Tributário Nacional e na Lei Kandir (LC nº 87/96), em relação à alíquota do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica, comunicação, entre outros.

Sem sombra de dúvidas, dentre as alterações trazidas pela referida Lei Complementar, a que mais gerou grande repercussão foi o artigo 2º, inciso X, que expressamente dispôs que o ICMS não incide sobre "serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica".

Ainda em junho de 2022, o Colégio Nacional de Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg), representando os governadores dos estados de Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Piauí, Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.195, pugnando para que fossem afastadas, até o julgamento final da ação, os dispositivos previstos nos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 7º, 8º, 9º e 10 da Lei Complementar Federal n. 194/2022, e, posteriormente para que fosse declarada a inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos.

Importante mencionar que, paralelamente a isso, em sessão virtual de 14 de dezembro de 2022, nos autos da ADI 7.191 e da ADPF 984, ambas de relatoria do ministro Gilmar Mendes, o tribunal, por unanimidade, homologou o acordo firmado entre a União e todos os estados e Distrito Federal para aperfeiçoamento legislativo da LC 194/2022, no qual ficou instituído grupo de trabalho, por meio de negociação (como técnica autocompositiva) entre os próprios entes federativos, para fins de discussão dos critérios material e quantitativo relacionados as tarifas de energia elétrica, que compõem os serviços de transmissão, distribuição e encargos.

Ato contínuo, em 09 de fevereiro de 2023, o relator ministro Luiz Fux concedeu a tutela cautelar requerida pelo Conpeg para fins de suspender os efeitos do artigo 3º, inciso X, da Lei Complementar nº 87/96, com redação dada pela Lei Complementar nº 194/2022.

Em março de 2023, o STF, por maioria dos votos, ratificou a tutela cautelar concedida para suspender os efeitos do artigo 3º, X, da Lei Complementar nº 87/96, com redação dada pela Lei Complementar nº 194/2022, até o julgamento do mérito da ação, vencido o ministro André Mendonça.

Razões de decidir do ministro Luiz Fux
Pontuamos resumidamente, a seguir, as principais razões de decidir identificadas na decisão preferida pelo ministro Luiz Fux:

1) haveria indícios de que o Poder Legislativo Federal, ao editar a Lei Complementar 194 de 2022, ora questionada, teria desbordado a competência que lhe fora outorgada pela Constituição para dispor sobre o ICMS, o que caracterizaria a fumaça do bom direito;

2) no aspecto material, o conceito de "operação" remeteria não apenas ao consumo efetivo de energia, mas a toda infraestrutura utilizada para a realização do consumo (sistema de transmissão de energia);

3) a Constituição Federal, em seu artigo 155, inciso II e parágrafo 3º, bem como a ADCT em seu artigo 34, parágrafo 9º, teriam disciplinado a questão, atestando a incidência do imposto sobre o total das operações;

4) por fim, a urgência da concessão da medida se encontraria no fato de que os Estados estariam sofrendo prejuízos bilionários em razão da disposição legal questionada.

Análise crítica da decisão do STF
Com relação a tutela cautelar concedida há de se questionar alguns pontos.

O primeiro deles se refere ao fato de o ministro Fux e, consequentemente, os demais ministros da Corte, a exceção do ministro André Mendonça, terem se omitido a respeito da decisão proferida pelo próprio Supremo que gerou o Tema n. 956, no qual se fixou o entendimento de que a incidência de ICMS sobre a Tust e a Tusd não se trata de uma matéria de cunho constitucional e sim, infraconstitucional, não podendo, portanto, ser um tema analisado pela Suprema Corte.

Se o Tema nº 956 foi acertado ou não, isso é outra história. Fato é que a Suprema Corte deveria, ao menos, revisitar o Tema 956 e estabelecer um distinguish entre a atual discussão e a que levou à fixação da tese — em respeito a harmonia e coerência do sistema jurídico, tal qual preconizado pelo próprio CPC, e em respeito aos jurisdicionados —, para que se reconheça a existência de questão constitucional na discussão, semelhante ao que foi realizado na apreciação do Tema de Repercussão Geral nº 956 em relação ao Tema nº 176.

Outro ponto que chama a atenção (talvez o que mais importante) se refere ao fato de a decisão sustentar que o Congresso Nacional teria extrapolado sua competência, invadindo a autonomia dos Estados e do Distrito Federal ao retirar os custos de transmissão e de distribuição de energia elétrica do computo do ICMS.

Tal afirmação deve ser vista com extrema cautela. Se olharmos a Constituição verificaremos que ela prescreve, expressamente, em seu artigo 146, inciso III, alínea "a", caber à Lei Complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre "definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes".

E o que o Congresso fez ao editar o artigo 2º, inciso X, da LC 194/2022?

A breve leitura do dispositivo nos mostra que o seu objetivo foi justamente regulamentar a base de cálculo do ICMS, de modo a evidenciar que a Tusd e a Tust não integram a base de cálculo do imposto.

Importante lembrar que que o próprio STF, ao julgar, em 2017, o tema do Diferencial de Alíquota do ICMS (Difal), afirmou que cabe a Lei Complementar dispor "sobre obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo/alíquotas e créditos de ICMS".

Nesse quesito impende insistir que a Suprema Corte, em diversas oportunidades, salientou a importância da Lei Complementar para tratar de diversos critérios temas da regra-matriz. Além do exemplo do Difal, acima apontado, há outros que poderíamos citar como aquele que declarou a inconstitucionalidade do artigo 35 da Lei nº 7.713/88 por por violação ao artigo 43 do Código Tributário Nacional (RE 172.058-1/SC) e reforçou a necessidade da Lei Complementar estabelecer a hipótese e incidência do gravame; como a ADI 1.600 que julgou inconstitucional a cobrança de ICMS sobre transporte aéreo por falta de previsão em lei complementar que solucionasse conflitos de competência; como no RE 851.108 (Tema 825 da Repercussão Geral) que julgou inconstitucional a exigência de ITCMD sobre doações e herança do exterior sem edição de lei complementar; e, recentemente, a ADI 5.823,  em que já maioria para se declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar 157/16 por ter tratado do local de incidência do ISS para diversos serviços sem estabelecer critérios claros.

Em consonância com o que dispõe o nosso ordenamento jurídico, a Lei Complementar se trata da ferramenta necessária para regulamentar as normas gerais em matéria de legislação tributária e tratar da regra-matriz dos impostos. Por certo, não estamos tratando de uma mera faculdade atribuída à Lei Complementar, mas sim de uma obrigatoriedade.

Logo, tem-se no caso em tela, que a União não invadiu a competência dos estados, ao editar a LC 194/2022, estando autorizada pelo artigo 146, inciso III, a, do Texto Maior que expressamente menciona a "base de cálculo" como critério da norma padrão de incidência apta a ser tratada por lei complementar.

Uma decisão tal qual proferida pelo ministro Luiz Fux revela um perigoso raciocínio que poderia refletir em outros casos, tendo por consequência o esvaziamento do artigo 146 da Constituição.

Com tanto ou mais cautela ainda deve ser vista a decisão no diz respeito à definição do conceito de "operação" para fins de incidência do Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias pois o assunto não é tão simples quanto parece.

A afirmação pura e simples do ministro de que o termo "operações" constante no artigo 155, inciso II e parágrafo 3º, bem como no artigo 34, parágrafo 9º, da ADCT, teriam já disciplinado por completo a questão, garantindo a incidência do imposto sobre o valor "total das operações" o que obstaria o legislador complementar de incluir ou excluir da base de cálculo do ICMS a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) e a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (Tust), sem uma contextualização do sistema constitucional tributário é muito perigosa.

Como já tivemos a oportunidade de afirma, a Constituição, ao discriminar as competências tributarias, foi recortando e formulando conceitos, formando classes cujas notas distintivas permitem a identificar a parcela da realidade que a ela pode se subsumir e, conquanto apresentem um maior ou menor grau de intenção, ela não esgota a matéria nela relacionada, razão pela qual outorga competência ao Legislador Complementar de definir tais conceitos, assim como, por vezes, ao legislador ordinário.

A utilização de conceitos, neste quadro criado pelo constituinte, não deve implicar num esvaziamento da competência dos legisladores infraconstitucionais, mas em uma verdadeira delimitação eficaz do seu exercício, a fim de garantir segurança, confiabilidade e previsibilidade por parte dos jurisdicionados.

Ademais, como pontua o ministro André Mendonça no seu voto de divergência a decisão do ministro Luiz Fux, tal afirmação, sem uma revisita ao Tema nº 956, pressuporia uma outra controvérsia a respeito da apreciação do tema tanto pelo STJ como o STF. Segundo Mendonça "(...) se a questão da materialidade do ICMS energia elétrica já está pré-definido no texto constitucional, não caberia ao Colendo STJ, nos termos do art. 105, III, da Constituição de 1988, julgar, sob o rito dos recursos repetitivos, a juridicidade da ‘inclusão da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica (Tust) e da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica (Tusd) na base de cálculo do ICMS’, questão essa que pertence ao tema repetitivo 986. [...] Do mesmo modo, a Suprema Corte teria incorrido em erronia, pois no Tema nº 956 do ementário da Repercussão Geral decidiu-se, por maioria, que a controvérsia referente à inclusão da Tust e da Tusd na base de cálculo do ICMS não ultrapassaria o nível infraconstitucional e, por consequência, a questão não ostentaria repercussão geral."

A decisão também faz menção aos supostos prejuízos que os estados estariam apresentando em razão da disciplina da referida Lei Complementar. Embora seja razoável aventar tal ponto para sustentar o "perigo na demora" em sede liminar, espera-se que na decisão final a legalidade não seja relativizada por interesses financeiros dos Entes Tributantes, sob pena de se escapar aos argumentos jurídicos, recaindo no perigoso "consequencialismo".

Respondendo a provocação do título do presente artigo, a ênfase com que os argumentos são apresentados na decisão que deferiu a tutela cautelar, nos faz acreditar, num primeiro momento, que o STF irá seguir no sentido do provimento à ADI nº 7195, mas a esperança de que a Corte será coerente a seus próprios julgamentos, seguindo a mesma linha de raciocínio fixada no Tema nº 956, e irá respeitar a separação dos poderes presente na Constituição, nos faz, ainda assim, apostar em uma decisão final que derrubará a liminar concedida e negará provimento a referida ação judicial, de modo que a matéria prossiga sendo julgada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Façam suas apostas!

 

Artigo 3º O imposto não incide sobre: (...) X - serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica. (Incluído pela Lei Complementar nº 194, de 2022).

 

Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2023, 6h00, por Por  e , https://www.conjur.com.br/2023-jun-22/mcnaughtone-santos-tusd-tust-base-icms-facam-apostas2