OPINIÃO Tributação do RBO e as razões da Solução de Consulta Cosit 38/2023

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A Lei n° 12.783/2013, alterada pela Lei n° 13.203/2015, determina, como critério para escolha das empresas concessionárias do setor elétrico
O critério para se tomar uma decisão é, por vezes, tão ou mais importante quanto a própria decisão. Ao menos é assim no Direito, em que a razão de decidir num caso deve valer da mesma maneira para todos os outros semelhantes. Exige-se um grau mais elevado de racionalidade, por assim dizer, sob pena de se incorrer em erros e contradições no futuro — ou, o que é pior, incorrer no risco de restringir direitos injustificadamente.
 
Temos um bom exemplo para ilustrar isso: em fevereiro deste ano, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta Cosit n° 38/2023, em que afirmou constituir receita bruta da empresa concessionária de serviço público de geração de energia o retorno pela bonificação da outorga (RBO), o que exigiria a inclusão desses valores nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL — como o próprio nome indica, trata-se de rubrica de "retorno", ressarcimento, portanto, o que imediatamente levanta a questão: por que adicionar uma receita desse tipo na base de cálculo do imposto?
 
A Solução de Consulta Cosit nº 38/2023 fareja bem o caminho a ser seguido, acerta na conclusão, mas, digamos com clareza, erra nos seus fundamentos. Como? O pronunciamento reconhece a natureza de despesa necessária do chamado bônus de outorga, pago pela concessionária como condição para êxito na licitação relativa à concessão, o que autorizaria a sua dedução na apuração dos referidos tributos. Assim, à luz do artigo 53 da Lei n° 9.430/96, o caminho seria apontar para a dedutibilidade da despesa como critério para a adição do retorno/ressarcimento na apuração do lucro. A conclusão, contudo, não foi essa: o pronunciamento apenas sustenta que o RBO, a despeito de ser uma forma de ressarcimento, compõe a receita bruta da companhia.
 
Explique-se melhor.
 
A Lei n° 12.783/2013, alterada pela Lei n° 13.203/2015, determina, como critério para escolha das empresas concessionárias do setor elétrico, a maior oferta pelo pagamento ao poder concedente — eis, então, a figura do bônus de outorga como o valor a ser pago pela empresa vencedora. Na prática, cumpre a função de valor de referência para lances a serem dados em leilão: vence a empresa que oferece o maior ágio em relação ao valor estabelecido como o bônus. A empresa concessionária vencedora, contudo, recupera esse custo, a partir do RBO. Essa restituição ocorre mediante uma parcela da tarifa de energia elétrica paga pelos consumidores.
 
Em suma, o RBO é uma recuperação de despesa incorrida pela empresa concessionária, para obter o direito de prestar o serviço público de geração de energia elétrica.
 
Mas o fato de o RBO acompanhar a tarifa não é suficiente para torná-lo receita. Relembremos que o Supremo Tribunal Federal, no RE n° 606.107, reconheceu que "quanto ao conteúdo específico do conceito constitucional, a receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições [...]". Em relação ao patrimônio do contribuinte, a receita há de ser um elemento novo, um incremento, o que exclui entradas cujo único objetivo é recompor o caixa anteriormente aplicado num custo.
 
Não por acaso, o contribuinte consulente reconhecia o RBO no ativo financeiro, já que este concede o direito incondicional de receber caixa. Na medida em que recebia o pagamento do RBO, creditava a conta de ativo financeiro (reduzia) e debitava o mesmo montante em conta de caixa (aumentava), ambas no ativo e sem trânsito pelo resultado. Esses lançamentos demonstram a neutralidade patrimonial do RBO — ocorre o que Ricardo Mariz de Oliveira chama de permutação patrimonial, em que há apenas o deslocamento da riqueza dentro do mesmo patrimônio, sem acréscimo ou decréscimo.
 
Logo, não há qualquer elemento, seja jurídico seja contábil, para tratarmos o RBO como receita. Trata-se, como dissemos, de recuperação de custos e despesas, sujeito ao regime do artigo 53 da Lei n° 9.430/96.
 
A situação é bastante semelhante à repetição de indébito tributário, em que a própria RFB, por meio do ADI SRF n° 25/03, reconheceu a não tributação dos valores restituídos a título de tributo pago indevidamente, na hipótese de tais despesas não impactarem o lucro tributário no período em que foram incorridas. A semelhança é ressaltada se verificadas as razões que justificaram a instituição da bonificação de outorga: tal como a instituição de um novo imposto, a criação do bônus de outorga adveio com o fim de reduzir o déficit fiscal do governo federal.
 
Não há, portanto, razões para atribuir ao RBO tratamento distinto do aplicado a qualquer recuperação de custos. Apenas se comprovado que as despesas recompostas foram deduzidas no período em que incorridas, os valores poderão ser adicionados na base de cálculo do IRPJ e CSLL. Nesse caso, a tributação não ocorre por existir receita auferida, mas, sim, pela necessidade de neutralizar o efeito fiscal de uma dedução de despesa aproveitada pelo contribuinte em momento anterior — o intuito é evitar que o contribuinte se beneficie duplamente. O fato de a recuperação ocorrer juntamente com o recebimento de outros valores, "faturados" pelo contribuinte, não altera a natureza do ingresso financeiro.
 
É algo sutil, mas não trivial. Além de não distinguir receitas de meras entradas sem reflexo no patrimônio líquido, como no caso de receitas de terceiros e da recuperação de despesas adiantadas em benefício do cliente, a interpretação simplista da Receita Federal tolhe a liberdade das companhias de não aproveitarem a dedução da despesa quando foi incorrida, para evitar a adição dos valores recuperados na base do imposto.
 
Apesar de parcialmente correta nas conclusões, a Receita está integralmente equivocada na fundamentação. A fundamentação importa, e muito. As razões apresentadas na Solução de Consulta Cosit n° 38/2023 é um risco não só para as empresas concessionárias de energia elétrica, mas para outros os modelos de negócios.
 
Gabriel Moreira é coordenador de inteligência e consultivo tributário do Serur Advogados.
 
Revista Consultor Jurídico