OPINIÃO Ordenamento desordenado: o Estado de Direito violado pelo Carf

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O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal em que "o infrator é também juiz", deve ser considerado um tribunal de exceção. Ele serve para encobrir sonegações bilionárias e bloquear o acesso dos credores de tributos ao Poder Judici

 O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal em que "o infrator é também juiz", deve ser considerado um tribunal de exceção. Ele serve para encobrir sonegações bilionárias e bloquear o acesso dos credores de tributos ao Poder Judiciário.

Este artigo é a síntese, ora retomada, de um parecer que inspirou um artigo anterior, cujo núcleo foi mostrar que o Carf é inconstitucional. Desenhado com a razão de um Tribunal de Exceção — concebido para bloquear a aplicação das leis tributárias —, acoberta e estimula sonegações bilionárias, tornando-se instituição que gera uma profunda desigualdade na aplicação da lei em favor dos contribuintes infratores.

Trata-se de um órgão do Ministério da Fazenda não previsto na Constituição, instituído pela Lei 11.941 de 2009 que transformou os três conselhos de contribuintes pré-existentes no Carf. Conta com duas instâncias recursais após a confirmação dos lançamentos do Fisco, tendo competência para decidir sobre as dívidas tributárias dos contribuintes.

Dos 130 conselheiros, metade é indicada pelo governo e metade por cinco confederações empresariais (comércio, indústria, bancos, agricultura e transportes). E suas decisões não podem ser revistas pelo Poder Judiciário.

A lei de 2009 atribuiu o voto de minerva aos presidentes das turmas, designados entre os nomeados pelo ministro. Mas em 2020, uma MP, convertida na Lei 13.988/2020, extinguiu o voto de qualidade (voto de desempate). Essa lei: I) suprimiu o voto de minerva; II) inseriu a regra "em caso de empate pro devedor"; III) vetou o acesso posterior da União ao Poder Judiciário.

Concedendo o desempate aos representantes dos empresários, constituiu um Tribunal aparentemente público, onde o próprio Estado é bloqueado no seu direito subjetivo de acesso à Justiça, na representação do interesse geral.

O novo governo editou em janeiro de 2023 MP com validade até 2 de abril, reintroduzindo o voto de qualidade do presidente, indicado pelo Ministério da Fazenda e o direito de acesso ao Poder Judiciário em caso de absolvição. Em face da fala do presidente da Câmara e de movimentos patrocinados pela OAB contrários à MP — defendendo os interesses privados de uma espécie de "partido orgânico do mercado" —, o ministro da Fazenda propôs um acordo pragmático.

Oferece a quitação dos juros e multas em caso de derrota do contribuinte-infrator para a aprovação da MP. Tal benefício também inconstitucional importará em redução de mais da metade da dívida, eis que os processos no Carf têm duração média de 9 anos.

Os integrantes da comunidade social, que dependem destas fontes de receitas para concretização dos seus direitos fundamentais, estão fora da equação do mais deslavado corporativismo fiscal da história da República. Mas foi instituída, assim, em benefício do estamento superior da sociedade, uma flagrante desigualdade na aplicação da lei e de acesso ao Poder Judiciário.

Esta garantia está expressa na abertura do artigo 5º da Constituição como igualdade na edição da lei, garantia reforçada no inciso XXXVII, dizendo que "não haverá juízo ou tribunal de exceção". A justificação deste privilégio é produzida pelos portais midiáticos do mercado.

Primeiro, geram momentos de violência simbólica com seus videoclipes acrobáticos, que conferem às autodenominadas classes produtoras o estandarte do heroísmo na geração do progresso e da felicidade geral. Ora exibem automóveis voadores das montadoras alienígenas (que só falam inglês), ora projetam lavouras infinitas dos agronegociantes, anunciando que alimentam o mundo.

Depois evocam os banqueiros invisíveis que distribuem dinheiro a juros supostamente quase negativos, fazendo — na esfera estética da propaganda — belos jovens saltitarem até às nuvens de tão felizes.

A seguir vem a reflexão circunspecta dos comentaristas políticos diante de qualquer pressão para redução dos juros ou da ameaça de qualquer imposição tributária visando tirar alguns centavos dos ricos, entoando o bordão do "estamos à beira do abismo".

A reflexão é seguida do chamamento dos economistas adestrados nos Estados Unidos que inundam o país ocupando as cátedras das universidades para repisar o dogma da austeridade e da prudência extrema em nome da ciência, além de denunciar uma tributação taxada de excessiva.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem diz que: "Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida" (artigo 10).

O discurso midiático que glorifica as grandes empresas, repetido a exaustão, concorre para legitimar o privilégio de escalar juízes que julgarão seus próprios atos. Privilégio que excede em muito o direito de todas as pessoas a um tribunal imparcial. Assim como o herói do mundo do faz de conta de Chico Buarque, que "enfrenta os alemães e seus canhões", merecendo "princesas nuas nos seus bosques encantados" (1), os heróis do progresso e da felicidade geral no Brasil merecem um Tribunal de Exceção só para eles, único no mundo em que os infratores são também juízes. Isto só acontece no mundo do faz de conta e neste país.

Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2023, 9h13