OPINIÃO Dos efeitos da Medida Provisória nº 1.160/2023 em matéria aduaneira

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OPINIÃO Dos efeitos da Medida Provisória nº 1.160/2023 em matéria aduaneira

Aludido instituto já havia sido banido do ordenamento em 2020 por meio da Lei nº 13.988 e sua volta é um retrocesso processual, com caráter assumidamente arrecadatório, que impõe ao contribuinte o ônus de estabilizar o déficit público e custear o aumento das verbas em prol do Estado, às suas expensas, independentemente de lhe assistir razão em contendas com a administração que cheguem ao Carf. 

Não obstante, verifica-se na inovação legislativa outros aspectos que atingem de maneira desvelada direitos constitucionalmente assegurados e que vão na contramão de grandes esforços empreendidos na defesa dos contribuintes, a exemplo da busca — necessária — pelo duplo grau de jurisdição em matéria aduaneira, especificamente concernente à aplicação da pena de perdimento, a mais gravosa de seu âmbito. Explica-se.

A medida provisória em questão, em seu artigo 4º, introduziu alteração na Lei nº 13.988/2020 com seguinte comando:

Art. 27-B.  Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.  (Incluído pela Medida Provisória nº 1.160, de 2023)

E qual reflexo na vida do contribuinte?
O reflexo é a impossibilidade de se levar ao Carf, órgão paritário, demandas com valores abaixo de R$ 1,3 milhão, teto que era de 60 salários mínimos antes da alteração, ou seja, R$ 79.200, um salto gigantesco em termos de limitação no acesso ao duplo grau de jurisdição administrativa, ofendendo de maneira direita a ampla defesa e o contraditório.

Isso porque, em que pese o parágrafo único do artigo 23 da Lei nº 13.988/2020 dispor que no contencioso administrativo de "pequeno valor", observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente.

E, na prática, a análise feita por membros do mesmo órgão administrativo tende evidentemente a manter o entendimento já proferido pela instância inferior. As decisões das DRJs seguem o posicionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais quando favorável à administração na maioria dos casos. Quando se trata de entendimento contrário, prevalece a sempre invocada autonomia do Julgador.

Seus órgãos colegiados — Câmaras Recursais —  não têm em sua composição representantes dos contribuintes e suas sessões são virtuais, conforme se verifica do artigo 8º da Portaria nº 340/2020, o que abala de maneira irremediável a imparcialidade, a isonomia e o direito a revisão recursal propriamente dita — instrumento que tem em seu fundamento na contingência humana, na falibidade da inteligência, da razão e da memória do homem, conforme preleciona Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 6ª ed., Revista dos Tribunais, 2007).

Já no Carf, a composição das Turmas é feita por membros da Receita Federal e membros que representam o contribuinte, têm-se sessões de julgamento abertas, presenciais, que oportunizam ao contribuinte realizar sua sustentação oral, o que assegura a aplicação dos preceitos constitucionais já invocados.

No entanto, com a alteração preconizada pela MP nº 1.160/2023, para levar se levar a questão ao Carf (agora novamente vinculado ao voto de qualidade em situações de empate), o valor em discussão deverá superar R$ 1,3 milhão o que, com a devida vênia, é um descompasso se considerado o teto que se tem como "pequeno valor" no ordenamento, a exemplo de requisições de pequeno valor em face da Fazenda Pública, que são aquelas que contemplam até 60 ou o teto do Juizado Especial Federal, também no mesmo patamar, que era, inclusive, o utilizado como referência na Lei nº 13.988/2020.

A reflexão que fica é, qual o parâmetro para sustentar, legalmente, esse abismo entre os conceitos de "pequeno valor" no ordenamento e o instituído por meio da MP 1.160/2023?

O que consta na exposição de motivos que precedeu a alteração não se mostra um argumento à altura dos necessários esclarecimentos, na medida em que justificou-se a adoção desse valor com base no inciso I do § 3º do artigo 496 do Código de Processo Civil, que estabelece o limite de alçada da remessa necessáriano caso de sentença proferida contra a União ou que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscalsendo que não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público.

Não há, na redação, qualquer referência no sentido de ser este um patamar de "pequeno valor", eis que, por certo, não o é, o que deixa claro e inconteste que se trata de medida tendente a impedir o acesso do contribuinte ao Carf, orgulhosamente considerado, até então, como um órgão mais equânime, técnico e justo.

Na própria exposição de motivos da MP 1.160/2023, há assunção de que a implementação de tal limite visa reduzir em cerca de 70% a quantidade de processos encaminhados ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o que poderá diminuir o tempo médio para o órgão entrar no fluxo para 2,27 anos e, nesta toada, propõe-se mais uma reflexão, no sentido de identificar quem esta medida busca beneficiar, sem a observância de qualquer critério jurídico. Por certo, não é o contribuinte, que já adentra a relação jurídico-processual administrativa em situação desfavorável, pois em prol da Administração já milita a presunção de legalidade e veracidade, à luz do princípio do interesse público.

Este cenário, de mitigação no acesso ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, balizando-se a complexidade das causas exclusivamente em razão de seu valor é ainda mais gravoso se consideradas as demandas em matéria aduaneira, especialmente no que concerne à aplicação da pena de perdimento, a mais severa, pois quando imposta em sua essência, ou seja, sobre os bens, já não há previsão de recurso, de acordo com o Decreto-Lei nº 1.455/76.

E há um envolvimento dos militantes da área para que sejam efetivamente postas em prática as disposições contidas no Acordo de Facilitação do Comércio, cuja Emenda foi promulgada por meio do Decreto nº 9.326/2018 e assim estabelece:

PROCEDIMENTOS DE RECURSO OU REVISÃO
 1. Cada Membro assegurará que qualquer pessoa para quem a Aduana emita uma decisão administrativa tenha o direito, dentro de seu território,
a
: uma revisão ou recurso administrativo a uma autoridade administrativa superior ou independente da autoridade ou repartição que tenha emitido a decisão; e/ou
(...)
3. Cada Membro assegurará que os seus procedimentos de recurso ou revisão sejam conduzidos de forma não discriminatória.
5. Cada Membro assegurará que a pessoa referida no parágrafo 1º seja informada das razões da decisão administrativa, de modo a permitir que essa pessoa possa ter acesso a procedimentos de recurso ou revisão, quando necessário.

Ou seja, desde 03/2018, o país já havia se obrigado, por força do Acordo de Facilitação do Comércio da OMC, a assegurar aos contribuintes o direito de revisão ou recurso por Autoridade Administrativa Superior em face de decisão proferida por Autoridade Aduaneira,  ou seja, autoridade desvinculada, comprometendo-se a garantir que tais procedimentos de recurso ou revisão se dessem de forma não discriminatória, o que ainda não foi implementado em relação a aplicação da pena de perdimento com base no Decreto-Lei nº 1455/76.

E, ao invés de avançar nesse sentido, o que se verifica é, justamente, o inverso, pois com a alteração em comento, em casos de multa substitutiva a pena de perdimento regida pelo Decreto-Lei nº 70.235/72 que não atinjam a alçada do Carf, a análise será feita, praticamente, da mesma maneira que a realizada sob o rito do Decreto-Lei nº 1.455/76, na medida em que não há membros do contribuinte nas Câmaras Recursais das Delegacias Regionais de Julgamento. Tudo será analisado por membros da Receita Federal, ou seja, vinculados a autoridade autuante aduaneira, o que viola além dos já cotejados princípios constitucionais, viola tratado internacional ao qual o país está obrigado.

Nos termos do artigo 60 da Convenção de Viena, em vigor no país desde 1965, a violação a um tratado pode ser compreendida como o repúdio puro e simples do compromisso, bem como uma afronta a um dispositivo essencial para execução de seu objeto e finalidade a ser alcançada e essa inovação no ordenamento é um exemplo inegável de afronta ao artigo 4º do Acordo sobre Facilitação do Comércio, eis que impedirá o acesso à revisão ou recurso, em caráter exemplificativo, de decisão administrativa que aplicou a pena de perdimento convertida em multa, em razão do valor de alçada, sendo que um dos pleitos mais relevantes da área aduaneira é, justamente, a oportunidade de levar decisões que aplicam a mais dura penalidade a uma reanálise, prerrogativa da qual o contribuinte gozava em casos de multa substitutiva, direito este desfalcado pela limitação de cunho pecuniário em patamar exorbitante.

Veja-se que a Convenção de Quioto Revisada, em vigor por força do Decreto nº 9.326/2018 desde a data de  sua publicação, assegura aos seus signatários, entre os quais se encontram o Brasil, além do direito de recurso, o direito a submeter sua irresignação a uma autoridade julgadora desvinculada da autoridade aduaneira e essa determinação é afrontada pela limitação de alçada, que passa a submeter o julgamento às Câmaras Recursais das Delegacias Regionais de Julgamento, medida que espera-se, seja revista.

Não se pode pretender ignorar os compromissos firmados pelo Brasil com a comunidade internacional e, principalmente, com a Constituição, em prol da arrecadação, mitigando-se a importância das vigas mestras do Estado Democrático de Direito, sob pena de abrir um perigoso precedente em desfavor da Carta Magna e dos contribuintes, que passam cada vez mais a situação de impotência em contendas com a administração pública, cabendo ao Poder Judiciário restabelecer o equilíbrio nesta balança.

FONTE: CONJUR