Opinião - ICMS (de novo) sobre exportações: avançar para o passado

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A temática que envolve a Lei Kandir do ICMS é um tanto quanto delicada, mas comumente reduzida a avaliações simplistas. A incorreção se inicia na comum fala sobre “acabar com a Lei Kandir” quando, na maior parte das vezes, o que está sendo discutido é o insuficiente e agora nulo financeiro da União para estados a pretexto de compensar perdas com a desoneração do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS sobre exportações).

 

Esta desoneração teve início, de fato, com a Lei Complementar 87/1996, a partir de projeto de autoria do então deputado federal Antônio Kandir, sob inspiração do saudoso jurista Alcides Jorge Costa. A lei tem por finalidade a regulamentação do ICMS, estendeu a desoneração, originalmente prevista apenas para produtos industrializados e parte dos semielaborados (conforme texto do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea "a" à época), a todos os produtos destinados à exportação — e garantindo o aproveitamento de créditos.

 

Por se tratar de um imposto de competência estadual (artigo 155, inciso II, da Constituição), a previsão veio acompanhada de uma medida compensatória: entrega da União para os estados de valor correspondente à arrecadação realizada no período anterior à desoneração, conforme redação original do artigo 31 da Lei Kandir.

 

Em 2000, contudo, a Lei Complementar 102 alterou o mecanismo de repasses, que passou a obedecer a percentuais politicamente definidos e montante voluntariamente estipulado, quebrando a lógica inicial de atenuação de impactos. Ora, a necessidade de recomposição não significa que os resultados da desoneração não sejam positivos, mas se dá, especificamente, em uma perspectiva de reequilíbrio federativo e repartição do impacto suportado pelos entes subnacionais, especialmente daqueles cujas economias se pautam na exportação de commodities.

 

A desoneração das exportações se tornou constitucional com a Emenda 42/2003. O constituinte derivado, ao alterar a previsão original, reconheceu que a desoneração acompanhava a necessidade de equalização da receita dos estados. Tanto foi que introduziu previsão, no artigo 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando edição de lei complementar para regulamentar repasses. Entendeu, ainda, que o então estipulado pela Lei Kandir não era suficiente para fazer frente ao ônus suportado pelos entes subnacionais, pelo que não acolheu o mecanismo ali contido, mas tão somente determinou que vigorasse como regramento tampão, até a edição da nova lei complementar (parágrafo 3º).

 

Passado mais de uma década da reforma constitucional, sem edição do regramento referido no ADCT, o Supremo Tribunal Federal confirmou a insuficiência dos repasses, o propósito da norma transitória do artigo 91 e a omissão inconstitucional do Congresso Nacional diante da não-edição de lei complementar, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25[1].

 

A inconstitucionalidade, portanto, não apontou para a Lei Kandir, mas para o descumprimento da norma constitucional transitória (artigo 91 do ADCT), uma vez que esta já se encarregava de fulminar o repasse realizado com base na versão alterada da lei complementar de 1996. Ora, também não há inconstitucionalidade na desoneração per si — bastaria a existência de regramento suficiente para reprimir externalidades negativas.

 

O Congresso Nacional, por sua vez, nada aprovou depois da decisão do STF — embora vagarosamente e ainda sem ser possível vislumbrar resultados efetivos. As discussões sobre o tema, contudo, acentuaram-se e resultaram em projeto de lei complementar (PLP 511/2018), já aprovado em comissão parlamentar mista destinada para tal fim.

 

O próprio PLP, por sua vez, tem seus (muitos) problemas, conforme sinalizamos em outra oportunidade[2]. O que está em evidência no momento, contudo, é estratégia ainda mais preocupante, já concretizada em proposta e ameaçando ser pautada antes do projeto de lei complementar. Trata-se da PEC 42/2019 e, essa sim, pretende “acabar com a Lei Kandir” — ou melhor dizendo, com a desoneração do ICMS-exportação, agora consubstanciado na Constituição. [3]

 

Igualmente, a PEC 42/2019 pretende a revogação da alínea "e" do inciso XII do mesmo dispositivo, que possibilita “excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outro produtos” indicados em lei complementar, além da imunidade concedida pelo texto constitucional — isto é, possibilita a isenção heterônoma no caso específico do ICMS-exportação, tal qual realizada pela Lei Kandir em 1996. Pelo texto proposto, também seria revogado o artigo 91 do ADCT — que, de fato, deixaria de fazer sentido, pois esvaziar-se-ia a necessidade “compensatória” gerada pela desoneração.

 

A ideia de retomar a tributação sobre parcela dos bens destinados à exportação não é nova. Proposta semelhante esteve pronta para deliberação do plenário do Senado Federal em 2018. A PEC 37/2007 percorreu três legislaturas e atualmente se encontra arquivada, desde o término da última (dezembro de 2018).

 

A estratégia política, desta vez, não foi o desarquivamento da PEC já existente, mas a apresentação de nova e similar proposta - declaradamente inspirada na primeira, conforme consta da própria justificativa da PEC de 2019. [4]

 

Tem sido citada fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, que afirmaria que a "a Lei Kandir morreu", alegando-se que, por isso, seria “chegada a hora de sepultarmos essa desoneração”[5]. Ora, encerramos assim, este texto, por onde iniciamos: a Lei Kandir, no que tange a repartição equalizatória de recursos para os entes subnacionais pela desoneração do ICMS-exportação, morreu quando não recepcionada em definitivo pelo artigo 91 do ADCT; teve sua morte confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, com a declaração da insuficiência de seus critérios de repasse na ADO 25; e aguarda sepultamento com a edição de lei complementar. Tal argumento do “sepultamento” representa um contrassenso, quando o próprio projeto do Congresso Nacional, oriundo da Comissão Mista — o PLP 511/2018 – propõe a manutenção (na razão de 20%) dos percentuais de rateio da Lei Kandir.

 

Não exportar tributos é uma lógica econômica elementar, e o que se evidenciou, quando da abertura econômica que culminou com o plano real, em 1994 — repita-se, necessária para conter a inflação — foi a passagem de um quadro superavitário para um deficitário, o que só foi corrigido com a Lei Kandir e a consequente melhora na competitividade dos produtos brasileiros perante o mercado internacional[6].

 

Acabar com a desoneração reeditaria, ainda, a confusão relativa à classificação dos bens, quando se alegava que seria tributado tudo que estava em estado puro. Aço e alumínio não eram tributados sob alegação de se constituírem como parcela dos semielaborados não alcançados pela incidência, conforme critérios da Lei Complementar 65/1991. Por muito menos, farelo de soja, açúcar, café torrado, minério em pelotas, seriam tributados.

 

Há, ainda, a discussão até então não formalizada de retomar a incidência do ICMS-exportação apenas para os produtos de origem mineral, diante de seu caráter não renovável e dos impactos socioambientais decorrentes de sua exploração. Ora, o argumento não é descartável, mas para isso existem royalties, conforme previsão do artigo 20, parágrafo 1º, da Constituição. A via para equalização da questão minerária (acaso se entenda que a compensação está atualmente aquém do necessário) não é a tributária, mas pela já (há muito tempo) existente Compensação Financeira para a Exportação de Recursos Minerais (CFEM).

 

Decerto, a reinstituição do ICMS-exportação, total ou parcial, se faria funesta para o país. Significaria prejudicar a exportação, a balança comercial, o equilíbrio econômico, em prol das finanças do estados — estados estes que, embora combalidos e prejudicados, nada são sem o todo federativo. Mesmo que seja para recriar o ICMS de modo a incidir apenas sobre exportações de produtos primários de origem mineral, parece que menor esforço parlamentar e maior viabilidade operacional se teria ao simplesmente aumentar os royalties sobre tal extração e destinar o aumento de sua receita aos governos estaduais e municipais dos respectivos territórios. Se a União julgar haver espaço para tributar tais exportações, poderia recorrer ao respectivo imposto, que pode alterar alíquota por decreto, e pactuar politicamente a inclusão de uma dotação no orçamento fiscal que destine recursos igual ao arrecadado pelo imposto de exportação de minerais para aqueles governos nos quais foram extraídos.

 

A estratégia, definitivamente, vai na contramão do que tem sido proposto em termos de reforma tributária. É contraditório que um país que não apenas não consegue editar uma norma de repasse compensatório - como pretende renunciar à tarefa - e onde o contribuinte tem tanta dificuldade de aproveitamento ou ressarcimento dos créditos de ICMS acumulados, fale em reformar o sistema tributário para adotar um imposto sobre valor adicionado (IVA), de base não-cumulativa e essencialmente atrelado à um dinâmica de aproveitamento de créditos. O que garantiria o sucesso do aproveitamento no IVA, especialmente se adotado em modelo dual, se não se conseguimos gerenciar nem mesmo, em menor escala, os créditos do ICMS?

 

Além de representar um contrassenso junto ao que se almeja para o futuro, a proposta também não atenta aos problemas experimentados no passado, quando o fenômeno inflacionário (que se instalou na década de 80) deixou clara a necessidade de abertura econômica para contenção do mercado e, em conseguinte, de incentivo às importações para coibir déficits comerciais.

 

Enfim, a ideia da revogação da desoneração do ICMS, portanto, vai além do ideal de equalização dos impactos sofridos pelos entes subnacionais para arriscar uma espécie de ganho ou ressarcimento “a qualquer custo” para os estados, por meio de alternativa edificada em crasso erro e lapso de memória. O conflito federativo precisa ser equacionado mas não à custa de aumentar a tributação das exportações, já penalizada pela não devolução dos créditos acumulados, e o exportador nada tem a ver com os desencontros entre governos e poderes.

 

Os meios não se justificam – especialmente porque o fim alcançado ultrapassaria o pretendido. Argumentos como a “ausência de boa vontade da União” não são capazes de relevar os graves impactos de uma possível retomada da tributação — com viés estritamente arrecadatório — das exportações. Das possíveis formas de resolver o conflito, estima-se ser essa a pior.

 

[1] O julgamento pelo STF foi analisado pelos autores em outra oportunidade, em coautoria com Celso de Barros Correia Neto, em artigo disponível em: <http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/20362> (AFONSO, José Roberto Rodrigues; PORTO, Lais Khaled; CORREIA NETO, Celso. As compensações financeiras da União aos estados e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25. In: NOMOS: Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC. p. 268-289).

 

[2] Ver artigo disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-09/opiniao-estados-nao-avancam-recebertransferencias-creditos>.

 

[3] A proposta visa a alteração do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea "a", da Constituição, que passaria a prever a não incidência do ICMS tão somente “sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semielaborados, definidos em lei complementar, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.

 

[4] A diferença entre as duas propostas é que a PEC 37/2007 pretendia, originalmente, determinar que a compensação de créditos nas operações imunes seria feita com impostos federais não compartilhados com estados e municípios (ou seja, Imposto de Exportação; Imposto de Importação e parte do IOF). Essa pretensão, contudo, foi extirpada (justificando-se impossibilidade prática) pelo próprio relator da PEC: o substitutivo inicialmente seria idêntico ao texto posteriormente apresentado – pelo próprio – como PEC 42/2019.

 

O debate justifica-se, segundo a nova PEC, pelos mesmos motivos que ensejaram a declaração de inconstitucionalidade por omissão na ADO 25, acrescido do esgarçamento do cabo de guerra entre União e Estados – com tendência de rompimento em cima do contribuinte-exportador, prejudicando a balança comercial do país.

 

[5] Vide justificação da PEC 42/2019, disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7938078&ts=1569509539821&disposition=inline>

 

[6] Sobre as razões que motivaram a Lei Kandir, recomenda-se VARSANO, Ricardo. Fazendo e Desfazendo a Lei Kandir. Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, ago/2013.

 

Fonte: Conjur