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Carf valida amortização do ágio em operações com compras alavancadas

Por Carlos Augusto Daniel Neto

 

O tema da amortização fiscal do ágio sempre foi objeto de divergências e polêmicas no âmbito do Carf[1], especialmente no que diz respeito à identificação do propósito negocial das operações societárias realizadas, no contexto de surgimento e aproveitamento fiscal do ágio.

 

Na maioria das vezes, a análise de um caso concreto não permite que se intuam conclusões imediatamente aplicáveis aos demais casos, especialmente pela natureza particular da apreciação global de todos os aspectos envolvidos. Entretanto, outras vezes, é possível verificar que determinadas espécies de operação vêm recebendo tratamento unitário dos colegiados, podendo indicar uma orientação do tribunal acerca dos seus efeitos tributários, e é exatamente sobre isto que pretendemos tratar hoje.

 

Hoje trataremos sobre o tema da validade da amortização do ágio por meio da utilização de empresa-veículo, mas dentro do contexto específico da utilização dessas empresas para a viabilização de uma compra alavancada (leveraged buyout) de participações societárias.

 

Antes de adentrar no tema, é preciso contextualizá-lo: nos últimos anos, os fundos de private equity (PE) têm crescido de importância no sistema financeiro globalizado, atuando na aquisição de participações societárias de empresas em diversos países, na expectativa do retorno financeiros desses investimentos. Apenas para ilustrar essa realidade, o volume de recursos captados, no Brasil, pelos fundos de PE atingiu R$ 13,6 bilhões, com crescimento de 161%[2], atingindo um capital comprometido (investido ou disponível para investimento) de R$ 171 bilhões.

 

Pois bem. Para viabilizar as transações para aquisição da participação e controle societários sobre as empresas, os fundos de PE, por meio de fundos de investimentos em participações (FIP), existem diversos meios, dentre os quais se destaca a compra alavancada (leveraged buyout – LBO).

 

A LBO consiste em uma operação por meio da qual o investidor adquire o controle societário da empresa-alvo utilizando-se de capital próprio (equity), mas com parcela substancial do preço incorrido suprida por meio de dívida tomada pelo comprador. A sua operacionalização envolve na criação de sociedade com propósito específico de aquisição da empresa-alvo, com determinada parcela de capital próprio, que captará recursos via dívida para realizar o investimento e, posteriormente à aquisição, a adquirente e a empresa-alvo são fundidas em uma só empresa, que assumirá a dívida tomada pelo investidor, promovendo o seu pagamento através das receitas operacionais que serão geradas a partir dali.

 

Da simples descrição da operação já fica evidente o ponto de atrito com os entendimentos consolidados no âmbito da Receita Federal: a criação de uma empresa específica apenas para a aquisição da empresa-alvo, a ser posteriormente incorporada pela adquirida.

 

Nesse caso, a empresa criada pelo FIP ou pelo fundo de PE terá a finalidade apenas de ser o canal para o equity e a dívida utilizados na compra, desaparecendo posteriormente ao ser incorporada pela adquirida, que pagará a dívida assumida. Entretanto, na operação de compra, é usual que haja ágio pago e registrado pela empresa adquirente, que passará a ser amortizado fiscalmente pela adquirida, após a incorporação ou fusão, nos termos do artigo 7º da Lei 9.532/97.

 

A autuação fiscal vem, portanto, justamente sob o fundamento de que a empresa adquirente é uma mera empresa-veículo (conduit company) para viabilizar a amortização fiscal do ágio pela adquirida, glosando os montantes amortizados. Duas autuações de operações desse tipo chegaram ao Carf: o caso CVC e o caso Ri Happy, que tiveram desfecho favorável ao contribuinte.

 

No caso CVC, julgado por meio do Acórdão 1301-003.469[3], os compradores aportaram recursos na empresa adquirente (que logo em seguida teve suas ações transferidas para um FIP sob o controle do fundo de PE responsável pelo aporte de capital), que adquiriu participações societárias da empresa CVC Brasil, com ágio, pagando uma parte à vista e se endividando com o próprio vendedor quanto ao restante do preço. Logo em seguida, a adquirente é incorporada pela adquirida, conforme estabelecido no contrato de compra e venda, passando a pagar as parcelas da dívida assumida e a amortizar fiscalmente o ágio pago.

 

No julgamento, a posição prevalente foi no sentido de que não haveria qualquer vinculação entre compradores e vendedores, e que a capitalização da empresa adquirente no Brasil teve a finalidade de concentrar a participação de inúmeros investidores estrangeiros, não tendo qualquer vício nisto. Quanto à compra, concluiu-se que a operação não tinha apenas uma finalidade fiscal (amortização do ágio), mas seu cerne era viabilizar a aquisição da CVC sem o comprometimento excessivo de equity e garantindo o pagamento da dívida com a receita operacional crescente que seria gerada pela empresa adquirida — a vantagem tributária da amortização do ágio seria uma decorrência acessória da forma como foi estruturada a aquisição. Ao final, aduziu que “a dívida assumida era necessária à operação, e apresenta uma coerente racionalidade econômica e financeira, que confere um propósito negocial à CBTC [empresa adquirente], a despeito de sua existência efêmera”.

 

No caso Ri Happy, julgado pelo Acórdão 1401-003.082[4], a situação foi semelhante: a empresa T4U, controlada por fundos de investimento que a capitalizaram para a aquisição, adquiriu participação societária na empresa Ri Happy, pagando uma parcela do preço à vista, e o restante por meio de financiamento assumido perante instituição financeira, sob o argumento de que os controladores da T4U não poderiam contrair empréstimos em face de norma regulamentar expedida pela CVM. Nesse ponto, o caso se diferencia do anterior (CVC) apenas pela circunstância do endividamento ter se dado com terceiro, e não com o comprador.

 

O relator aduziu que a dívida foi efetivamente contraída pela adquirente e que a parcela valor da compra que foi objeto de alavancagem foi elevada ao ponto de evidenciar que “o financiamento era peça chave no fechamento do negócio, aí pouco importando se o Grupo Carlyle tinha ou não os recursos financeiros necessários/próprios para realizar a aquisição e se os recursos vieram ou não do exterior”. Nessa linha, a T4U não poderia ser considerada como “empresa-veículo”, no sentido dado pela jurisprudência do Carf, por sua utilização era necessária e a redução da carga tributária seria legítima, por ser decorrência dela, e não causa.

 

Pontuou-se, por fim, que a confusão patrimonial, pressuposto do início da amortização fiscal do ágio, teria a função de unir a dívida gerada na aquisição ao fluxo de caixa necessário para o seu pagamento, consubstanciando observância do regime de competência, por meio da confrontação entre despesas e receitas. Em outras palavras, o encontro da despesa (pagamento do preço com ágio decorrente de expectativa de rentabilidade futura) e as receitas esperadas e futuramente auferidas pela empresa adquirida justifica que se aceite a dedutibilidade fiscal desse ágio.

 

Cabe mencionar, também, o caso John Deere, julgado por meio do Acórdão 1402-002.968[5], que também envolvia a aquisição de participação societária, com a constituição de holding com parcela do preço a ser pago integralizado, e a outra parcela obtida por meio de financiamento junto aos seus controladores estrangeiros — configurando, portanto, uma LBO. Nesse caso, entretanto, uma análise mais acurada permite perceber que a defesa de mérito apresentada ora tratou do referido ágio pago como “ágio interno” (quando o fundamento da autuação fora a utilização de empresa-veículo), ora utilizou argumentos genéricos, como a impossibilidade de fundamentação na falta de propósito negocial.

 

Desse modo, o referido caso não adentrou propriamente na função da empresa-veículo dentro do contexto da LBO, passando ao largo desse dado relevante, crucial para o resultado dos dois julgamentos relatados anteriormente. Esse ponto não deixou de ser observado, entretanto, no Acórdão 1402-002.443[6], que tratava exatamente da mesma operação, mas sob a perspectiva da dedutibilidade das despesas do financiamento junto à parte relacionada. Aqui, conquanto o provimento do recurso voluntário tenha se dado em razão da ausência de vantagem tributária para o contribuinte, pois a opção do financiamento e a capitalização com remuneração via juros sobre o capital próprio teriam o mesmo efeito fiscal, o relator pontuou que a holding teria propósito negocial específico, dentro do contexto da operação, ponto este que acabou não sendo aprofundado na discussão.

 

Pois bem, como explicado anteriormente, o LBO é uma opção relevante de aquisição de participações societárias por fundos de PE, sem comprometer em larga medida seu patrimônio e capital próprio[7], e aumentando o retorno para os investidores, ao viabilizar uma rentabilidade superior aos custos do empréstimo realizado para a compra, além de minimizar o risco do comprador.

 

O aval dado pelas turmas do Carf aos efeitos tributários do LBO, ao reconhecer a existência de propósito negocial na constituição de uma sociedade específica para a aquisição da empresa-alvo mediante equity e endividamento, é um estímulo aos crescentes investimentos em empresas brasileiras e ao próprio desenvolvimento econômico nacional, e demonstra a compreensão da relevância desse negócio para viabilizar a aquisição de participações societárias, que em muito transborda as vantagens tributárias que lhe são acessórias.

 

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 

Fonte: Conjur