STF pode revisar o alcance da Súmula 584 em matéria tributária

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O Supremo Tribunal Federal julgará, em regime de repercussão geral, o Recurso Extraordinário 592.396, no qual se discute a possibilidade de “aplicação de lei que majorou alíquota do imposto de renda"...

Por Daniel Corrêa Szelbracikowski e Rhuan Rafael Lopes de Oliveira

 

O Supremo Tribunal Federal julgará, em regime de repercussão geral, o Recurso Extraordinário 592.396, no qual se discute a possibilidade de “aplicação de lei que majorou alíquota do imposto de renda sobre fatos ocorridos no mesmo ano em que publicada, para pagamento do tributo com relação ao exercício seguinte”[1].

 

O caso trata da majoração de alíquotas do Imposto de Renda incidente sobre as importações incentivadas, promovida por meio da Lei 7.988/89. Embora editada em 28 de dezembro de 1989, a norma incidiu sobre o exercício de 1990 e teve por base os fatos ocorridos no ano-base de 1989.

 

A questão é relevante porque nos remete à reflexão acerca da dicção da Súmula 584/STF, editada em 1976, segundo a qual “ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”.

 

O próprio Supremo tem explicitado a necessidade de maior ponderação em torno da referida Súmula. É o que se verifica dos debates ocorridos durante a apreciação do RE 183.130, em 30 de setembro de 2014[2], e também de crítica manifestada pelo ministro Marco Aurélio à situação em que “toma-se de surpresa o contribuinte, que inicia o ano, a ser fechado com o balanço final de dezembro, com certa lei na qual prevista uma percentagem, vindo à balha diploma posterior majorando-a e apanhando, como eu disse, fatos geradores dentro da complexidade revelada pelo próprio ano e pelos meses nele contidos”[3].

 

Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo a análise crítica da Súmula 584/STF à luz do fato gerador do Imposto de Renda e dos princípios da irretroatividade e anterioridade (artigo 150, III, “a” e “b” da Carta Magna). Pretende-se demonstrar que a referida Súmula deve ser revista, pois atualmente permite a retroação de leis tributárias sobre os seus fatos imponíveis, o que vai de encontro ao princípio da proteção à confiança como corolário da segurança jurídica. Vejamos:

 

O princípio da anterioridade, atualmente consagrado no artigo 150, III, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal de 1988, veda a cobrança de tributos (i) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (anterioridade anual) e/ou (ii) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (anterioridade “nonagesimal”). Isso significa que, em regra, uma lei publicada em qualquer mês de determinado ano somente terá vigência a partir de 1º de janeiro do ano subsequente. Aplicando-se a anterioridade nonagesimal, a lei somente terá vigência após noventa dias de sua publicação.

 

Essa garantia fundamental do contribuinte — que deita raízes no princípio da anualidade estabelecido pela Constituição francesa de 17914 — protrai a vigência da lei tributária em benefício dos primados da segurança jurídica e da transparência que deve reger a relação entre a administração pública e o contribuinte.

 

O princípio da irretroatividade, por sua vez, além de estar previsto genericamente para as leis no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, foi também positivado de forma específica para as leis tributárias como uma limitação ao poder de tributar. Veda-se, dessa forma, a cobrança de tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado” (artigo 150, III, “a” da CF/88).

 

Ou seja, impede-se que a lei — posterior — qualifique juridicamente fatos que lhe são anteriores. Em outras palavras, proíbe-se a mudança de regras no meio do jogo. Se assim não fosse, haveria grave inobservância aos predicados da segurança jurídica e da confiança do cidadão no Poder Público, postulados lógicos de qualquer Estado que se denomine “de Direito”. Isso significa dizer, por exemplo, que uma lei publicada em 10 de dezembro de 2015 não poderá atingir fatos ocorridos até 9 de dezembro. Referida lei só teria capacidade de juridicizar os eventos ocorridos a partir do dia 10 de dezembro daquele ano, sem prejuízo da obediência, também, ao postulado da anterioridade.

 

Com efeito, os princípios da anterioridade e retroatividade devem ser aplicados — em regra — conjuntamente[5]. Ou seja, no exemplo acima, em função da irretroatividade, a lei não poderia atingir eventos anteriores a 10 de dezembro e, considerando-se a aplicação (apenas[6]) da anterioridade anual, só poderia efetivamente incidir sobre fatos jurígenos ocorridos após o início do exercício seguinte, ou seja, a partir de 1º de janeiro de 2016.

 

Por esse motivo é que Baleeiro já afirmava que “o princípio da irretroatividade estará qualificado pela anterioridade ou pela espera nonagesimal”[7]. Nesse sentido, “o princípio da anterioridade, que adia a vigência ou eficácia da lei nova, impede a aplicação da norma nova, ainda que ela seja editada antes do encerramento do ano-base. Isso porque, ao desencadear seus efeitos apenas no exercício financeiro seguinte, por força do princípio da anterioridade, a lei nova encontrará totalmente fechado o período relevante para a determinação da renda (ano-base anterior), configurando-se a sua retroação sobre fato pretérito, se aplicada.”8

 

Em relação aos tributos cujos fatos geradores são instantâneos, tais como, por exemplo, o ICMS, a aplicação dos postulados de anterioridade e retroatividade mostra-se relativamente fácil, sem maiores controvérsias. A dúvida surge, no entanto, em relação aos tributos exigidos sobre fatos geradores complexos, nos quais há um “fluxo de rendimentos ou de incremento do patrimônio, em determinado período, tais como o imposto de renda”[9].

 

Veja-se que o fato gerador do imposto de renda é considerado complexivo, pois todos os eventos ocorridos ao longo do ano são considerados para o aperfeiçoamento do fato gerador, o qual é materializado no dia 31 de dezembro de cada ano (artigo 221 do Regulamento do Imposto de Renda)[10].

 

Nesse sentido, aliás, “o Supremo Tribunal Federal possui o entendimento consolidado no sentido de que o fato gerador do imposto sobre a renda se materializa no último dia do ano-base, isto é, em 31 de dezembro. Assim, a lei que entra em vigor antes do último dia do período de apuração poderá ser aplicada a todo o ano-base, sem ofensa ao princípio da anterioridade da lei tributária.” (RE 553508 AgR, Rel.  Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 17/05/2011).

 

Ocorre que a questão que se põe a respeito da higidez da Súmula 584 é outra. Não se trata de criticá-la sob a ótica — pura e simples — da anterioridade, mas sim à luz do primado da irretroatividade da lei tributária, corolário da segurança jurídica — confiança — que deve existir nas relações entre o Estado e o contribuinte.

 

Primeiramente, cumpre asseverar que o referido enunciado foi editado em 1976 à luz de precedentes contextualizados no período anterior à edição do Código Tributário Nacional. Naquela época considerava-se que a renda auferida no ano-base era apenas um “valor de referência” para o cálculo da renda auferida no exercício financeiro (artigo 95[11] do Decreto 58.400 de 10 de maio de 1966).

 

Ocorre que, a partir da edição do CTN, o fato gerador do imposto de renda mudou de figura, passando de um “valor de referência” para a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” (artigo 43, caput), a qual só pode ser verificada dentro de um lapso temporal definido pela legislação ordinária.

 

Nesse sentido, o ministro Carlos Velloso, em precedente específico sobre o tema, já afirmava que “a partir do CTN, o fato gerador do imposto de renda passou a identificar-se com a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica do rendimento, no seu fluxo continuado até o encerramento do seu ciclo (artigo 116, inciso I), o que veio afastar a legislação anterior, orientada no sentido de que a renda auferida no ano-base seria apenas ‘padrão de estimativa’ da renda ganha no exercício financeiro, ou simples valor de referência, apresentando-se hoje tal aquisição no período-base como o próprio fato gerador. Assim, seria inaplicável a Súmula 584-STF, construída à luz da legislação anterior, em conflito com a sistemática do CTN posterior”[12].

 

Além disso, no primeiro precedente utilizado como ratio decidendi para a consolidação da Súmula 584/STF[13], o STF tratou de empréstimo compulsório e não de imposto sobre a renda, cujos fatos geradores são distintos.

 

Ademais, dada a característica complexa do fato gerador do imposto de renda, a irretroatividade exige que a lei que o altere com gravame ao contribuinte [14] seja anterior a todo o período de apuração e não apenas em relação ao dia que registra o término desse lapso temporal, ou seja, 31 de dezembro de determinado ano.

 

Nesse sentido, aliás, há muito se posiciona a doutrina [15], ao indicar que “por tratar-se de imposto de período — uma vez que o auferimento de renda e proventos há de ser mensurado dentro de um lapso temporal — a lei aplicável é aquela que estiver em vigor e eficaz no primeiro dia do exercício financeiro (ano-base) no qual esses acréscimos patrimoniais serão produzidos. Portanto, se a lei majoradora do IR for publicada no curso do exercício financeiro, não será hábil a qualificar fatos senão antes do próximo exercício”[16].

 

Do mesmo modo, o STJ, responsável pela interpretação da legislação federal em âmbito nacional, consignou ser “inaplicável o verbete sumular 584 do STF, erigido à luz da legislação anterior à atual Carta Magna, vigendo, desde então, os princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei tributária.” (AgRg no Ag 1363478, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 25/03/2011).

 

Esse entendimento deve, com maior razão, ser adotado pelo STF, considerando sua função de guardião da Constituição Federal e o fato de que a irretroatividade das leis tributárias — além de estar positivada no texto Maior — é imposição decorrente do princípio constitucional da segurança jurídica. Este só pode ser compreendido como concretizador do princípio da confiança dos cidadãos na determinabilidade das leis, “expresso na exigência de leis claras e densas e o princípio da confiança, traduzido na exigência de leis tendencialmente estáveis ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos seus efeitos”[17].

 

Na hipótese em análise, a Lei 7.988/89, editada em 28 de dezembro de 1989 e com vigência a partir de 1º de janeiro de 1990, pretendeu atingir retroativamente os acréscimos e decréscimos patrimoniais verificados entre 1º de janeiro de 1989 e 31 de dezembro do mesmo ano. Trata-se de clara infringência ao postulado da irretroatividade das leis que não pode ser tolerada no âmbito do Estado Democrático de Direito.

 

Em síntese, considerando que o Supremo já assentou que “os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico”[18], a Súmula 584/STF deve ser revogada, estabelecendo-se na jurisprudência que a legislação aplicável aos tributos complexivos deve ser aquela vigente no ano-base que servirá de referência para a composição da base de cálculo do tributo. Com isso, será garantido o direito dos contribuintes de não serem surpreendidos com majorações ou alterações repentinas na legislação que modifiquem o quantum devido a título de imposto, em estrita observância aos princípios da irretroatividade e segurança jurídica.

 

Fonte: Conjur