Trust não pode ser usado para sonegação fiscal

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Nosso editor cobra sempre que esta coluna examine assuntos atuais e complexos, com o duplo propósito de informar e simplificar ao público leitor o emaranhado normativo e técnico do Direito Tributário...

Por Heleno Taveira Torres

 

Nosso editor cobra sempre que esta coluna examine assuntos atuais e complexos, com o duplo propósito de informar e simplificar ao público leitor o emaranhado normativo e técnico do Direito Tributário. Não é tarefa fácil, como podem imaginar. Então, já que a figura jurídica do trust entrou no noticiário nacional na última semana (sob muitas dúvidas), vemo-nos compelidos a esclarecer os seus contornos jurídicos e tributários.

 

O trust, não obstante seja importante instrumento jurídico dos países anglo-saxões, nas últimas décadas, porém, passou a ser intensamente utilizado por diversos “paraísos fiscais”, ao lado das holdings companies, como medida para o que alguns chamam impropriamente de “proteção patrimonial”.

 

A partir de 1998, a OCDE e seus países-membros decidiram criar normas para superar a “forma” desses e de muitos outros tipos jurídicos, em muito, pela falta de transparência, para exigir a “substância econômica” nas atividades, como condição de validade. Um controle que o Brasil incorporou com a Lei 11.727/08, ainda que não se reporte especificamente aos trusts. Deveras, ninguém pode se esconder atrás da forma de trust, que é algo secular e legítimo, sem evidenciar sua substância ou comprovar a licitude da origem do dinheiro, para que seus efeitos sejam assegurados. 

 

Para afastar qualquer uso dos trusts com fins de sonegação fiscal, por exemplo, a Itália introduziu, no artigo 74 a 76 da Legge 296 de 27/12/2006, severas medidas de controle sobre sua utilização em paraísos fiscais e de tributação sobre todas as situações jurídicas decorrentes da cessão dos recursos pelo Settlor ou da percepção pelo beneficiário dos direitos ou frutos decorrentes.

 

Consideramos que medida semelhante poderia ser empregada no Brasil, a prescrever um regime de transparência nas hipóteses de trusts em paraísos fiscais, para determinar a tributação transparente dos rendimentos do beneficiário, salvo prova em contrário que confirme a prevalência da substância sobre a forma.

 

Essa preocupação já se via na própria Convenção de Haia sobre a lei aplicável aos trusts e sobre o seu reconhecimento (Convenção de Haia sobre trusts)[1], ratificada por vários países, como Austrália, Canadá, China, França, Itália, Luxemburgo, Holanda, Suíça, Estados Unidos ou Inglaterra. Nesta, a única disposição que se refere à matéria tributária encontra-se no seu artigo 19, segundo o qual nada da convenção pode prejudicar a aplicação de normas tributárias pelas autoridades fiscais dos países, a saber: “nothing in the Convention shall prejudice the powers of States in fiscal matters”. Destarte, os trusts não se podem utilizar para qualquer finalidade de ocultação de bens ou de sonegação fiscal, aqui ou alhures.

 

Embora o Brasil não seja signatário da Convenção de Haia sobre trusts, as regras que ela traz são de observância obrigatória pelo nosso Direito Positivo, como as do Decreto-lei 4.657/42 (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LIDB). Segundo os artigos 7º e 11 da LIDB, as pessoas jurídicas constituídas no exterior serão regidas pelas leis externas[2]. Muito embora o trust seja um contrato, e não uma pessoa jurídica, como o artigo 6º da convenção prescreve que o trust é regido pela lei que houver sido determinada pelo settlor, é induvidoso o dever de recepção desses tipos de investimentos ou de sociedades no exterior[3].

 

A forma adotada por figuras jurídicas estrangeiras, quer na sua personificação jurídica, quando é o caso, quer nas suas relações constitutivas, refoge à alteração por lei tributária ou ação de autoridade administrativa, nos termos do artigo 109 do CTN, quando na ausência de lei em sentido diverso[4]. Sem lei que expressamente possa dispor em sentido contrário, pois prevalecem os efeitos típicos do Direito Privado: isto é, a mantença do instituto na forma jurídica prevista nos países de constituição.  

 

Numa síntese, o ordenamento deve conservar os efeitos dos trusts constituídos no exterior, desde que os recursos aportados sejam de origem lícita, não haja qualquer espécie de fraude ou cometimento de crime na sua utilização e a forma de funcionamento atenda à legalidade e à Convenção de Haia. Falta, porém, no Brasil, uma regulamentação específica para controlar o uso indevido do trust, como já se fez com a subcapitalização e outros casos elusivos.

 

Para uma melhor compreensão, vale observar que o trust deita suas raízes na Idade Média, cuja evolução sedimentou no common law seus traços típicos, o que traz notável dificuldade de recepção nos países de origem latina, onde prevalece o civil law, por não se compreender com clareza a separação entre real property e personal property.

 

Em termos esquemáticos, o trust deve evidenciar três elementos essenciais, conforme estipulou a Convenção de Haia sobre trusts, em seu artigo 2o, a saber:

 

a) a segregação da titularidade dos bens ou direitos, pela qual ao trustee (administrador ou gestor) é atribuída a propriedade legal e aos beneficiários se confere a propriedade econômica;

 

b) a autonomia dos bens e direitos dados em trust em relação ao patrimônio geral do trustee, em vista da afetação desses bens e direito a determinados fins; e

 

c) a atribuição ao trustee de uma obrigação fiduciária, qual seja, a de gerir os bens transferidos pelo settlor, segundo as condições impostas no instrumento de criação do trust ou pela lei[5].

 

Sua noção mais aproximada talvez seja a de uma relação fiduciária em virtude da qual um determinado sujeito, o settlor, proprietário dos bens ou patrimônio (trust fund), transfere-os a um outro sujeito, o fiduciário (trustee), que passa a ter, sobre tais bens ou direitos, a propriedade formal (trust-ownership, legal state) ou a titularidade, com a obrigação de custodiá-los ou administrá-los, para atribuir os ganhos ou rendimentos a um ou mais beneficiários, que podem ou não ter sido previamente definidos pelo settlor[6]. Assim, o beneficiário deterá a propriedade substancial — “econômica” — (beneficiary ownership), podendo o trust servir a um ou mais beneficiários ou a uma finalidade própria[7].

 

Em outros termos, o trust permite dividir a propriedade de um bem (ou cindir a titularidade de um mesmo direito) entre dois sujeitos, dos quais um, o trustee, é legitimado a exercitar grande parte das faculdades comumente inerentes ao direito de propriedade, e o outro, o beneficiary, o sujeito que gozará das vantagens do exercício de poder do trustee sobre o bem de sua propriedade (que pode ser o próprio settlor).

 

Temos, pois, uma estrutura triádica de relações jurídicas de natureza fiduciária, nas quais um sujeito (settlor) atribui a outro sujeito (trustee — pessoa física ou jurídica) a legitimação (legal title) para cumprir determinados atos sobre específicos bens ou direitos (que constituem a trust property), com a obrigação de mantê-los e administrá-los de acordo com as determinações contidas no contrato de trust firmado por ambos, no interesse de um ou mais beneficiários titulares. Como se pode ver, à propriedade jurídica (que remanesce com o trustee) contrapõe-se a propriedade econômica dos beneficiários (com base no equity law).[8]

 

Nesse sentido, não é difícil acrescer a perspectiva funcional de autores, como Melhim Chalhub, para quem a natureza jurídica do trust é definida pela função, por se tratar de uma transmissão de propriedade atrelada à obrigação do trustee de praticar os atos necessários aos objetivos para os quais foi criado[9].

 

De fato, o trustee tem o dever de prestar contas e transmitir a propriedade e a posse dos bens a quem de direito, conforme o disposto na lei do país de constituição ou do contrato. Isso, entretanto, não faz do trust um “residente” do país do settlor. Como exemplo, no Acordo Fatca, quando o trust não se integra por residentes dos signatários, não precisa ser informado pelo Brasil aos EUA ou vice-versa[10]. Deveras, o trust nunca se afirma como proprietário absoluto e definitivo dos bens, mas também não acompanha a titularidade originária.

 

Dúvidas, porém, não pode haver sobre o dever de declaração, no Brasil, da transferência de patrimônio para criação de trust no exterior (i), estejam os recursos ou ativos dentro ou fora do território nacional; ou sobre os rendimentos percebidos pelo beneficiário (ii), quando transmitidos pelo trust.

 

Na relação jurídica entre o settlor (brasileiro) e o trustee (administrador do trust) tem-se uma obrigação com efeitos reais. Nesse caso, não há qualquer dúvida sobre o dever de declaração dos bens e recursos remetidos, no Brasil, ao tempo da transferência do patrimônio pelo settlor (proprietário originário), junto ao Banco Central e à Receita Federal do Brasil, com baixa proporcional do patrimônio cedido na declaração de bens do settlor.

 

Quanto à exigência de tributos, na transferência do settlor para o trustee, como regra, tem-se típico caso de “doação”, logo, passível de incidência do ITCMD. Desse modo, cabe aos estados o dever de cobrança do ITCMD relativa ao montante dos recursos transferidos para constituição do trust no exterior. O trust recebe patrimônio do settlor para administrar. Não se pode conferir a esta transferência qualquer equivalência com rendas de não residente (o trust), por não se revelar alguma evidência de capacidade contributiva deste.

 

Para cumprimento das obrigações do trustee (administrador), este deve adimplir as cláusulas do contrato em favor do beneficiário (beneficial ownership). E como o trustee geralmente é uma pessoa não residente, este não tem dever de declaração, no Brasil, dos investimentos sob sua propriedade jurídica.

 

Quanto ao recebimento dos recursos ou dos seus frutos pelo beneficiário, impõe-se o dever de declaração junto ao Banco Central, na forma da Medida Provisória 2224/2001, e à Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), sobre qualquer recebimento, sob pena de ofensa ao disposto no artigo 1º da Lei 8137/91 (crime contra a ordem tributária ou sonegação fiscal) e artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86 (evasão de divisas, caso receba ou mantenha depósitos no exterior).

 

Destarte, a obrigação acessória de declaração do patrimônio percebido deverá ser cumprida pelo beneficiário, afora o recolhimento dos tributos devidos. Nesse caso, afora o IOF sobre o câmbio, no caso de pessoa física, incidirá o IRPF sobre os valores percebidos pelo beneficiário, à alíquota de 27,5% (carnê leão), com lançamento na declaração de ajuste anual e fornecimento de declaração ao Bacen, por força da Medida Provisória 2224/2001. Caso não tenha sido prestada a declaração à SRFB, caberá ao contribuinte apresentar as declarações retificadoras, com as repercussões moratórias de estilo (artigo 138 do CTN, na condição de “denúncia espontânea”).

 

Portanto, quando o beneficiário receber distribuições do trust a qualquer título, pela natureza de acréscimo patrimonial, não é de “doação” que se trata, mas de típico caso de rendimento tributável. O trust não “doa” patrimônio ao beneficiário. Logo, o beneficiário tem o dever de declarar e pagar o IRPF na proporção do rendimento auferido (regime de Pass-Through Taxation), quando deverá identificar como “fonte” o trust no exterior.

 

Neste novo cenário de transparência, não mais se pode tolerar o uso de trusts como meio para qualquer forma de sonegação fiscal. Daí a urgência de aprovação pelo Congresso Nacional da Convenção Multilateral de Assistência Mútua em Matéria Tributária, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ainda em tramitação[11]. Com sua aprovação, a partir de 2016, os controles sobre os usos indevidos de trusts, fundações e sociedades no exterior serão cada vez mais intensos, a exigir adaptações do Direito Tributário nacional para separar as formas lícitas de trusts daquelas dedicadas à simples ocultação patrimonial, o que é uma distorção inconcebível do instituto secular do common law.

 

Fonte: Conjur