LC 151 e leis estaduais sobre depósitos em juízo violam a Constituição

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A Lei 9.703/1998 determina a transferência imediata para a União dos tributos federais depositados pelo contribuinte em processos administrativos ou judiciais...

Por Igor Mauler Santiago

 

A Lei 9.703/1998 determina a transferência imediata para a União dos tributos federais depositados pelo contribuinte em processos administrativos ou judiciais. E impõe a sua devolução em 24 horas, com Selic, em caso de derrota da Fazenda. O risco de calote é próximo de zero, pois o diploma autoriza a Caixa Econômica Federal a debitar as quantias a serem restituídas diretamente da Conta Única do Tesouro Nacional.

 

Importante notar que a regra não se estende a todos os depósitos feitos perante a Justiça Federal, cuja competência vai muito além da discussão de tributos, e nem abrange os outros ramos do Judiciário mantidos pela União, como a Justiça Eleitoral e (imagine-se o escândalo) a Justiça do Trabalho.

 

Atacado na ADI 1.933/DF, o sistema foi ratificado aos fundamentos centrais de que (a) não há instituição irregular de empréstimo compulsório, pois o depósito tributário é faculdade, não dever; (b) nem confisco, porque se garante a restituição pronta e integral; (c) e tampouco ofensa à separação dos Poderes, já que o recebimento e a administração dos depósitos não constituem atividade jurisdicional[1]. Reforça esse último ponto o artigo 139 do CPC (artigo 149 do Novo CPC), que define o depositário como mero auxiliar do juízo – cujos atos não têm, portanto, caráter judicial.

 

Ainda que constitucional, a lei teve dois efeitos deletérios: (i) atiçou a cobiça da Fazenda Nacional por dinheiro em lugar de outras garantias nas execuções fiscais, jogando por terra o princípio da menor onerosidade, com as bênçãos do STJ[2]; e (ii) fê-la apostar na morosidade judiciária, pois, já dispondo livremente dos recursos, ganha mais em protelar reveses (que a obrigarão a devolvê-los) do que em antecipar êxitos.

 

Voltando ao acórdão, nota-se que registra a dúvida do STF quanto à capacidade dos Estados de darem igual garantia de devolução. É que diplomas estaduais posteriores à Lei 9.703/1998 e mais ou menos inspirados nela já tinham, àquela altura, sido submetidos ao crivo da Corte.

 

Na Medida Cautelar na ADI 2.214/MS, tratava-se de lei sul-mato-grossense que transferia para o Tesouro os depósitos de tributos estaduais e ordenava, à falta de restituição ao contribuinte vencedor, o bloqueio das contas do Estado. A liminar foi denegada aos mesmos fundamentos listados nos tópicos (a) a (c) acima[3], e a ação perdeu o objeto antes do exame do mérito.

 

Também anterior à ADI 1.933/DF foi a ADI 3.458/GO, versando lei goiana que criava conta única de depósitos judiciais e extrajudiciais, à qual eram vertidos 100% dos depósitos não fiscais e 50% dos relativos a tributos estaduais, sendo essa última parcela – e só ela – desde já repassada aos cofres públicos. Além desse encaixe imediato, para cuja restituição criava-se um fundo de 20% do saldo da conta única, outra vantagem para o Estado residia na apropriação do spread bancário, é dizer, da diferença entre os juros decorrentes da aplicação financeira do saldo da conta única e os índices devidos aos depositantes. A lei foi anulada por vício de iniciativa (por ter sido proposta pelo Executivo, tendo-se afirmado que cabia ao Judiciário), ofensa à separação dos Poderes e invasão da competência federal para legislar sobre Processo Civil[4]. Dos três fundamentos, o único que subsiste na atual jurisprudência do Supremo é o último.

 

Um mês depois do julgamento da ADI 1.933/DF foram examinadas, no mesmo dia, três ações diretas sobre o tema:

 

— ADI 2.855/MT, tendo por objeto lei mato-grossense que, sem liberar os depósitos judiciais para o Tesouro, limitava-se a carreá-los (tributários ou não) para uma conta única e a autorizar o Judiciário a apropriar-se do spread. O STF declarou-a inconstitucional por vício de iniciativa – que fora do Judiciário, e agora se entende como não atendendo a nenhum dos incisos do artigo 96 da Carta[5];

— ADI 2.909/RS, sobre lei gaúcha essencialmente idêntica à lei do Mato Grosso, e invalidada pela mesma razão[6];

— ADI 3.125/AM, a respeito de lei amazonense similar às duas anteriores, censurada por vício de iniciativa (fora proposta pelo Judiciário) e por usurpação da competência federal para legislar sobre Processo Civil[7].

 

Note-se a diferença. No primeiro caso, o Executivo estadual queria acesso imediato aos depósitos tributários. Nos três últimos, os Judiciários locais pretendiam apropriar-se do spread relativo aos depósitos tributários ou não. E o segundo é um misto das duas situações.

 

Ambas as pretensões baseiam-se na premissa de que o Estado seria, a um tempo, depositário e depositante dos valores confiados pelas partes. É dizer: estas os entregariam ao Judiciário e ele, num segundo momento, os custodiaria em um banco. Se fosse assim, o tema seria de Direito Financeiro (gestão de recursos que transitam pelos cofres públicos), sujeito à competência concorrente dos três entes federados, nos termos dos artigos 24, inciso I, e 30, incisos I a III, da Constituição.

 

No que tange especificamente aos spreads, a consequência seria que o Estado ficaria obrigado a pagar os índices legais ao vencedor, podendo lançar mão de qualquer rendimento que os excedesse.

 

Só que assim não é, pois, como anotou o STF ao indeferir a liminar na ADI 1.933/DF, “o juiz figura no depósito judicial não como depositante ou depositário, mas como fiscal”[8].

 

Tanto isso é verdade que, em caso de remuneração insuficiente dos depósitos pela instituição financeira, é desta a legitimidade para responder pelo dano causado ao vencedor da demanda, seja ele o particular (na esteira da Súmula 179 do STJ) ou o próprio Estado, que não pode se voltar contra o depositante[9]. Se o Estado fosse o depositário, a responsabilidade seria sua no primeiro caso, e não teria sentido a sua pretensão (rechaçada, mas por outras razões) no segundo.

 

Não sendo questão de finanças públicas, a disciplina dos depósitos judiciais é mesmo matéria processual, privativa da União. A conclusão não é afastada pelo caráter não jurisdicional daqueles, afirmado pelo STF. É o próprio artigo 139 do CPC que dispõe que as atribuições dos auxiliares do juízo – dentre os quais figura o depositário – “são determinadas pelas normas de organização judiciária”. E nem poderia ser diferente, pois da higidez dos depósitos depende o resultado útil dos processos em que realizados.

 

Quanto aos spreads, o que se tem é uma briga entre os Judiciários estaduais e as instituições depositárias – que, vale lembrar, são públicas (CPC, artigo 666, inciso I; Novo CPC, artigo 840, inciso I). A sua expropriação pelo Judiciário constitui um imposto estadual com alíquota de 100% sobre os lucros obtidos pelos bancos a partir dos depósitos judiciais, em inconstitucionalidade dobrada (incompetência e alíquota excessiva). O imposto de renda é federal, e de sua arrecadação participam os demais entes federados, na forma do artigo 159, inciso I, da Constituição.

 

A esses debates, nem sempre postos nos termos acima, seguiram-se as Leis federais 10.819/2003 e 11.429.2006, autorizando os Municípios e os Estados a lançarem mão de 70% dos depósitos judiciais de seus tributos, desde que mantivessem um fundo para garantir a satisfação do contribuinte vencedor. Constatada a insuficiência do fundo, segundo critérios fixados em cada lei, e omitindo-se o ente público em complementá-lo, o banco reteria futuros depósitos judiciais até a regularização do saldo.

 

A Lei Complementar 151/2015, que revogou a citadas leis federais, praticamente reproduz os seus termos, com as diferenças principais de que abrange os depósitos administrativos e também os não tributários, se efetuados em processos de que o Estado, o Distrito Federal ou o Município seja parte.

 

O risco de o fundo não bastar para o levantamento de um depósito (confessado no artigo 8º, parágrafos 2º e 3º, da lei), associado à possibilidade de seu permanente desequilíbrio – seja porque não parece exata a estimativa de 70% de vitórias da Fazenda diante de contribuintes que fazem depósito judicial (os sonegadores e os aventureiros não agem assim), seja porque os depósitos tendem a declinar no futuro, dada a perda de confiança da população no instituto (como adverte Fernando Scaff[10]) — apontam para o confisco oriundo da proteção insuficiente do direito fundamental à propriedade[11], justificando a procedência da ADI 5.361.

 

Se a promessa de restituição é séria, impõe-se a alteração da lei complementar, para que a garantia repouse, não sobre um fundo de composição incerta, mas nas próprias Contas Únicas dos Tesouros Estaduais e Municipais, à semelhança do que ocorre quanto à União. Só isso a salvará, a nosso ver, de uma declaração de inconstitucionalidade doutro modo inevitável.

 

Mas o pior vem agora. Em lance inédito, vários Estados têm editado leis arrogando-se o uso também dos depósitos realizados nos processos de que não são parte (ações movidas entre particulares). Veja-se bem: não está em jogo a titularidade dos spreads, mas a apropriação parcial dos próprios depósitos, inclusive dos anteriores à vigência dos diplomas. É o caso da Lei Complementar fluminense 147/2013, objeto da ADI 5.072/RJ, da Lei Complementar paranaense 159/2013 (ADI 5.099/PR), da Lei Complementar paraibana 131/2015 (ADI 5.365/PB), da Lei mineira 21.720/2015 (ADI 5.353/MG), da Lei piauiense 6.704/2015 (ADI 5.392/PI), e quem sabe de quantas outras...

 

As inconstitucionalidades se cumulam: invasão da competência da União para legislar sobre matéria processual; desvio em relação à lei de normas gerais (Lei Complementar 151/2015), caso se entenda que a questão é de Direito Financeiro (ofensa ao artigo 24, inciso I e parágrafos 1º e 4º, da Carta); certeza de insuficiência dos fundos de reserva (confisco dos valores depositados), mesmo que sejam propostas tantas ações com depósito entre particulares quanto aquelas que se encerram, porque em nenhuma hipótese os recursos serão levantados pelo Estado — ao contrário do que ocorre com as ações fiscais e as demais de que este é parte.

 

Ademais, se os valores terão sempre de ser entregues a terceiros, o seu uso pelo Estado só se justifica a título de empréstimo, como bem observa Fernando Scaff no texto já referido. E o seu emprego para quitar precatórios ou sanear as contas das previdências estaduais, objetivos comumente fixados pelos diplomas em tela, viola o artigo 167, inciso III, da Constituição, segundo o qual o crédito público, salvo exceções não verificadas aqui, só pode custear despesas de capital.

 

Autorizar os Estados a utilizarem os depósitos feitos em ações de que não são parte é o mesmo que permitir-lhes fruírem das coisas depositadas ou dadas em garantia em outros processos em curso na Justiça Estadual. As situações são idênticas, e nada indica a admissão de um tratamento diferenciado para o dinheiro.

 

Em suma, os depositantes do passado e de hoje proporcionarão o pagamento dos precatórios atrasados e precisarão, eles próprios, de precatórios para reaver os seus depósitos. Despir um santo para vestir outro nunca trouxe boas graças.

 

Fonte: Conjur