A política econômica da desoneração da folha de pagamento

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Em nossa primeira coluna, abordamos o uso de instrumentos tributários (gastos tributários indiretos) como meio de indução de comportamentos econômicos...

Por José Maria Arruda de Andrade

 

Em nossa primeira coluna, abordamos o uso de instrumentos tributários (gastos tributários indiretos) como meio de indução de comportamentos econômicos. Esses gastos são considerados renúncia de receitas porque representam desvios da tributação potencial visando a objetivos econômicos e sociais.

 

Toda norma jurídica que prescreve um regime diferenciado em relação à regra geral e anterior, por meio de alterações de aspectos estruturais da obrigação tributária considerada de referência, e que, ao fazê-lo, gera uma redução do valor a ser arrecadado no regime original e, ao mesmo tempo, configura uma alternativa ao que seria um gasto direto do governo, mas que em verdade representa uma entrega indireta ao público alvo da medida, pode ser considerada um gasto tributário indireto.

 

Um dos exemplos dessa figura, dos mais interessantes, em virtude de suas características arrojadas e polêmicas, é a medida conhecida como desoneração da folha de pagamento, que criou uma contribuição substituta à contribuição previdenciária patronal, incidente sobre a folha de pagamentos na razão de 20% em favor de outra, incidente sobre a receita bruta na razão de 1% ou 2%, a depender do setor econômico.

 

Importante, logo de início, registrar que essa política surgiu como uma medida anticíclica, inserida no denominado Plano Brasil Maior, cujo desafio divulgado foi o de “sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto econômico adverso” e de “sair da crise internacional em melhor posição do que entrou, o que resultaria numa mudança estrutural da inserção do país na economia mundial”[1].

 

A política foi implementada por meio da Medida Provisória 540/2011, cuja exposição de motivos assinala, ao lado do objetivo de intervenção anticíclica[2], a preocupação com a formalização do emprego (valorização do trabalho humano, nos termos do artigo 170 da Constituição Federal de 1988) e o aumento de produtividade dos setores escolhidos (serviços de tecnologia da informação (TI) e tecnologia da informação e comunicação (TIC), bem como das indústrias moveleiras, de confecções e de artefatos de couro.

 

A inclusão dos setores econômicos foi, inicialmente, de forma nominal e, no decorrer da ampliação da medida, por meio do código nacional de atividade (CNAE) e depois por códigos de produtos (NCM), o que demonstra um aspecto eclético e não uniforme, prejudicando, inclusive, a avaliação dos resultados econômicos no mercado.

 

Do ponto de vista da política tributária, se a troca da base do tributo original fosse realizada em condições neutras de carga tributária (sem redução da arrecadação potencial), haveria um deslocamento de um custo diretamente relacionado ao trabalho em prol de outro, direcionado à produção. No mínimo, configuraria um melhor casamento entre os momentos de faturamento de uma empresa e sua tributação, já que o custo do trabalho é mensal, e o faturamento nem sempre é feito em curtos lapsos temporais.

 

Discussões teóricas sobre essa substituição (a troca da base folha de pagamento pela receita bruta) não são recentes[3]. Ainda assim, a sua mera transposição para o sistema tributário brasileiro requereu enormes esforços legislativos, como o de uma emenda constitucional[4], e a sua implementação envolveu e ainda envolve difíceis obstáculos na elaboração da política.

 

A medida, como se encontra atualmente, tem aplicação que está longe de ser simples, já que retira de um regime geral (contribuição sobre a folha de pagamento) certos setores e produtos, criando, muitas vezes, regimes jurídicos simultâneos (construção civil e empresas fabricante de produtos desonerados e não desonerados, por exemplo), com formas de apuração e cumprimento de obrigações acessórias distintas, gerando novos custos de conformidade.

 

Além disso, a seguridade social, conjunto de políticas sobre as áreas previdência, saúde e assistência social (artigos 194 e 195 da CF/88), foi planejada para ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta (princípio da solidariedade do custeio da seguridade). De forma direta, a seguridade é custeada pelos segurados individuais (empregados, autônomos e administradores) e pelos empregadores.

 

Os empregadores, em regra, recolhem contribuições sobre o lucro (CSLL); receita ou faturamento (PIS e Cofins) e sobre a folha de pagamento (contribuição previdenciária patronal). Como se vê, trata-se de um mix de contribuições sociais, que acabam por incidir sobre parcela do lucro, sobre a produção (faturamento) e sobre o custo do trabalho (folha de pagamento).

 

A lógica da arrecadação da seguridade é atuarial, já que o INSS atua como uma grande seguradora (com as devidas adaptações para o regime jurídico dos serviços públicos). As contribuições que a financiam não são impostos sobre a atividade econômica (baseados na capacidade contributiva), são contribuições sociais que devem custear a seguridade social. Isso é o que se chama, na literatura jurídica, de referibilidade entre um grupo de contribuintes e o fundamento da política que demanda o custeio. Essas contribuições não deveriam servir para o propósito de políticas econômicas sobre o consumo.

 

Ainda assim, o governo federal houve por bem realizar a experiência de uma política econômica anticíclica e até então temporária (seria válida somente até dezembro de 2014), baseada na troca das bases econômicas de tributação e na concessão de um benefício de tributário, já que não se almejou uma alíquota neutra, mas sim uma inferior ao valor potencial de arrecadação.

 

Medidas complexas, que geram muitas diferenças entre contribuintes (entre produtos, setores e até mesmo intrassetoriais), que flutuam ao sabor da conjuntura econômica (algo minimizado pelo mix original de contribuições com bases distintas previsto na Constituição), devem ser adotadas com parcimônia.

 

Ao tratar dessas políticas, costumo chamar a atenção à necessidade de profunda análise (i) dos estudos que precederam a elaboração da medida; (ii) da forma como foram implementadas; (iii) de sua governança executiva e, sobretudo, (iv) da análise de sua eficiência e efetividade.

 

Um dos aspectos positivos dessa desoneração foi a criação da Comissão Tripartite de Avaliação da Folha de Pagamento (CTDF), formada por representantes do governo federal, dos trabalhadores e empresários[5], responsável por analisar a afetividade de seus impactos econômicos, como geração de emprego e renda, formalização do trabalhador, competitividade, arrecadação tributária, desenvolvimento setorial e capacitação e a inovação tecnológica (artigo 2º do Decreto)[6].

 

A relevância da medida, em termos objetivos e financeiros, pode ser assinalada a partir do valor da renúncia tributária que ela representa. Em 2013, foram R$ 12,29 bilhões; em 2014, R$ 22,11 bilhões; e, em 2015, até abril, R$ 8,1 bilhões[7].

 

Como os valores objeto da renúncia são destinados à seguridade social, a lei que instituiu o programa prevê que a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, no valor correspondente à estimativa de renúncia, de forma a não afetar a apuração do seu resultado financeiro. Isto, porém, significa uma renúncia na arrecadação e, por outro lado, um impacto no esforço fiscal do governo federal, na forma de gasto, ao se prever este repasse.

 

No decorrer da aplicação da medida, os setores econômicos responderam de forma positiva aos estímulos (96% de aprovação em 2013), o que pode estar tanto relacionado à mudança da base da tributação, quanto à redução da carga tributária pura e simplesmente. Ambas as respostas foram registradas nas consultas formuladas pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) em 2012 e 2013, para divulgação na Comissão Tripartite de Avaliação[8].

 

Por conta dessa relevante e forte avaliação por parte dos setores, a medida, outrora temporária, torna-se definitiva (Lei 13.043/2014).

 

Seguramente, tendo em vista o ingresso de alguns setores apenas em 2014, para corresponder às expectativas do ciclo de investimento das empresas, alguma prorrogação seria salutar, mas a medida, ao ser tornada permanente, perpetua certos aspectos problemáticos que somente uma reflexão profunda poderia solucionar.

 

Nesse sentido, há a necessidade de se reavaliar ou repensar totalmente a medida da desoneração da folha de pagamento, para ver o que realmente permitiu aumento de produtividade, a formalidade nas relações trabalhistas, o saldo líquido de empregos ou o que foi mero reflexo de redução da carga tributária simples, já que a alíquota alvo não foi neutra, e sim inferior, gerando relevante renúncia.

 

A existência de regimes excepcionais apenas para certos produtos ou setores econômicos, em um tributo cujo incidência dever ser generalizada (custo da exploração do trabalho humano), a inexistência, até então, de uma regra de opcionalidade para as empresas que foram prejudicadas e passaram a recolher mais tributos sem poder permanecer no regime original; a desigualdade por setor econômico na distribuição do benefício, certamente, são pontos que comprometem a medida.

 

Em uma reavaliação do programa, por parte do Ministério da Fazenda, na troca de gestão, houve uma releitura da avaliação, e os aspectos positivos, outrora apontados, foram substituídos por uma leitura de que a medida seria muito cara e de efetividade duvidosa[9]

 

Poucos meses após a confirmação de sua permanência (o que certamente não completa um ciclo de investimento por aqueles que confiaram da lei aprovada no final do ano passado), os setores econômicos beneficiados foram surpreendidos com a notícia de sua drástica elevação (de 1% para 2,5% e de 2% para 4,5%[10]).

 

Para assegurar outro tipo de caráter indutor, desta vez o da porta da saída da medida, finalmente o governo concordou com uma regra de opcionalidade, ou seja, os contribuintes que perceberem uma elevação tributária em suas projeções poderão sair da medida e retornar ao regime tributário original.

 

Em meio a caráter radical da medida, outras ideias, que inclusive já tinham sido debatidas anteriormente, foram olvidadas, como a de simplesmente reduzir, por determinado período, a alíquota geral da contribuição previdenciária de todos os empregadores, o que respeitaria a solidariedade do custeio, a igualdade e a vontade de aumentar a disponibilidade econômica das empresas em um momento de específico cenário macroeconômico.

 

Esses foram alguns aspectos problemáticos de uma medida tão polêmica quanto admirada pelos contribuintes que, no interior de cada setor, conseguiram se beneficiar dela.

 

A maior dificuldade continua, contudo, de aferir os efeitos econômicos sobre os setores, sobretudo porque os setores atingidos pela medida (grupo de tratamento, no linguajar econométrico) dificilmente pode ser isolado do resto do mercado. Nos dados mais consistentes, do ponto de vista estatístico, os avaliadores relatam a existência de um saldo líquido de empregos (entre admissões e não demissões); contudo, os efeitos não parecem ter sido tão fortes a ponto de superar o elevado custo de cada emprego gerado ou mantido, na ordem de R$ 63.000 por vaga/ano[11].

 

Fonte: Conjur