MP 685/2015: uma tentativa inconstitucional de tributação por analogia

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E a conta do descalabro da má gestão da coisa pública vem para o contribuinte, com a cessação de desonerações...

Por Roberto Duque Estrada

 

“Não tenho medo da morte/ mas sim medo de morrer/ qual seria a diferença você há de perguntar/ é que a morte já é depois que eu deixar de respirar/ morrer ainda é aqui, na vida, no sol, no ar/ ainda pode haver dor/ (....)/ Não tenho medo da morte/ mas medo de morrer, sim/ a morte é depois de mim/ mas quem vai morrer sou eu/ o derradeiro ato meu/ e eu terei de estar presente/ assim como um presidente dando posse ao sucessor/ terei que morrer vivendo/ sabendo que já me vou.” (Gilberto Gil)

 

Escrevo ainda sob o impacto do show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Dois amigos, um século de música”, comemorativo dos 50 anos de carreira dessa dupla de cantores e compositores, personagens fundamentais da nossa música popular. Talento e emoção são as palavras que, para mim, melhor descrevem esse encontro histórico. Dois craques, Pelé e Garrincha, e uma seleção impecável de músicas que marcaram a trajetória artística de ambos, de Domingo no parque a Desde que o samba é samba, passando por clássicos como Terra e Drão, pelas canções do exílio e da Bahia, com direito aos solos de Caetano na belíssima Tonada de luna llena e de Gil na canção que cito na epígrafe sobre a morte e o medo de morrer. A dupla ainda nos brinda com uma inédita composição muito inspirada — As camélias do quilombo do Leblon, que fala de uma nova abolição — e segue andando com fé pela vida.

 

Mas a fé não é isenta de crítica. O momento do país não é para brincadeiras tropicalistas, e o show de certa forma provoca uma inflexão. Não há conversa com a plateia; chega a ser paradoxal, mas ouvimos a apresentação das canções e, simultaneamente, ouvimos o som do silêncio que vela a morte da certeza que tínhamos quanto à maturidade do país. Acabou a festa, acabou a euforia, acabou a confiança. Resta a técnica e o talento para seguir trabalhando, sem mais ilusões.

 

E a conta do descalabro da má gestão da coisa pública vem para o contribuinte, com a cessação de desonerações, com o aumento de impostos existentes, com a criação de novos tributos ou mesmo com a tentativa de ressurreição de tributos que já tinham sido sepultados pelo parlamento, como é o caso da CPMF.

 

Ocorre que não é só com o aumento da carga tributária que os contribuintes são ameaçados. Uma recente medida provisória é uma fatwa de destruição lançada pelo Executivo em 2015 contra a esperança dos contribuintes em dias melhores, porque escancara as portas para uma arbitrária tributação por analogia.

 

Referimo-nos à Medida Provisória 685, de 21 de julho de 2015 (MP 685/2015), que instituiu a obrigação de se informar à administração tributária federal as operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo, estabelecendo como consequência da não apresentação a caracterização de omissão dolosa com intuito de sonegação ou fraude fiscal e imputação de multa de ofício de 150%.

 

Na última coluna, já criticamos essa providência inadequada e inoportuna, que merece ser rejeitada pelo Congresso Nacional, sem maiores tergiversações.

 

A prova da absoluta falta de oportunidade da medida foi o próprio recuo da Receita Federal, que anunciou que não exigirá a apresentação da declaração este ano, conforme noticiado no jornal Valor Econômico de 28 de agosto passado. “A intenção era começar a cobrar a declaração neste ano. Mas como a MP está em discussão no Congresso e serão necessários mais esclarecimentos, somente depois da redação final vamos normatizar e torná-la obrigatória”, afirmou o subsecretário de fiscalização do órgão, Iágaro Martins.

 

E não poderia ser de outra forma, já que a medida, tal como formulada, não encontra qualquer apoio na sociedade. Tanto assim é que, na mesma matéria, noticia-se terem sido apresentadas mais de 200 emendas ao texto no Congresso, muitas delas supressivas de todos os dispositivos que instituíram a malfadada obrigação declarativa.

 

Não bastasse a resistência do parlamento à medida, o próprio Poder Judiciário já estava sendo instado a se pronunciar, em processos individuais, como aquele noticiado na mesma reportagem acima citada (liminar concedida pela 4ª Vara Federal Cível de São Paulo), e mesmo em uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro PSB) (ADI 5366)[1], na qual são impugnados os artigos 7º ao 13º da MP 685/2015. Em referida ADI, sustenta-se a existência de diversos vícios de inconstitucionalidade, a saber: “ausência do pressuposto de urgência para edição de MP, afronta à restrição material quanto à edição de MP sobre direito penal/processual penal; violação dos direitos fundamentais à segurança jurídica, à livre iniciativa, à presunção de inocência, à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal; e a ofensa aos princípios da estrita legalidade em matéria tributária e da vedação ao confisco”.

 

É indiscutível que não há qualquer urgência para a apresentação de medida dessa natureza, que bem poderia ser discutida no parlamento por meio de um projeto de lei, tanto que a Receita Federal recuou na sua exigência para o ano de 2015. Acresce que a MP veicula norma de caráter penal (artigo 12), já que configura a falta de apresentação ou a apresentação irregular da declaração como “omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude”, em contrariedade direta à proibição constante do artigo 62, parágrafo 1º, I, “b” da Constituição Federal.

 

A violação à segurança jurídica é flagrante. Quando se lê o artigo 7º, facilmente se constata o absurdo subjetivismo que envolve a caraterização das hipóteses ali elencadas, quais sejam: a falta de razões extratributárias relevantes e a utilização de forma não usual, de negócio jurídico indireto ou de contrato que contenha cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico.

 

Ainda dominado pelo alto grau de subjetivismo está o artigo 11 da MP, que considera ineficaz a declaração que for omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico. A amplíssima margem de discricionariedade que o Executivo se auto outorgou deixa o contribuinte sem qualquer possibilidade de confiança quanto ao regular cumprimento do dever de declarar, pois qualquer argumento poderá ser invocado pelo Fisco para justificar a insuficiência de informações e, por isso, a incapacidade de compreensão.

 

A medida apenas confirma o ideário que tem permeado o pensamento da administração fiscal nos últimos anos segundo o qual o planejamento tributário — isto é, a adoção de práticas lícitas para economia de imposto — é ilegítimo e deve ser sancionado com autuações fiscais. Esse pensamento repudia o direito de planejar e mascara, na verdade, a intenção de tributar por analogia.

 

Com efeito, na mesma edição do jornal Valor Econômico, o secretário da Receita Federal Jorge Rachid escreveu artigo intitulado Declarações que ajudam Fisco e contribuintes, no qual defende o modelo adotado pela MP 685/2015 como se fora uma solução para o apaziguamento das relações fisco-contribuinte, marcadas por autuações da ordem de R$ 190 bilhões nos últimos quatro anos. No texto, cita-se o seguinte exemplo de planejamento que deve ser punido: “Se pessoa jurídica declarou, por exemplo, uma operação de troca de ações, mas que na verdade se destina a alienar participação societária, onde seria devido o imposto sobre o ganho de capital, ser-lhe-á, antes de qualquer procedimento de fiscalização, comunicado sobre o entendimento da administração tributária em relação ao caso concreto e assegurado o direito de recolher os tributos sem acréscimo de multa alguma”.

 

Então vejamos bem. A troca ou permuta de ações é um fenômeno translativo de propriedade e, sem dúvida, uma modalidade de alienação. Portanto, o desejo da pessoa jurídica foi de fato alienar uma participação. Mas, em vez da compra e venda, optou pela permuta. Escolher entre permutar ou vender está na esfera de liberdade do cidadão, e pagar imposto sobre tal negócio jurídico depende essencialmente de o mesmo submeter-se a um tipo legalmente previsto de forma adequada ao fato gerador consagrado em lei complementar.

 

É cediço na doutrina do direito tributário que a operação de permuta não importa em realização de ganho de capital[2]. Apenas na existência de torna, complemento em dinheiro, e na proporção da torna é que se pode operar a tributação pelo Imposto de Renda.[3]

 

A não tributação das operações de permuta foi afirmada com todas as letras pela Procuradoria da Fazenda Nacional no Parecer PGFN 161.970-91, de 23 de setembro de 1991, no qual se firmou entendimento segundo o qual a entrega pelo licitante vencedor de títulos da dívida pública federal ou de outros créditos contra a União, como contrapartida à aquisição das ações leiloadas no âmbito do Programa Nacional de Desestatização, caracteriza-se como permuta, caso em que não incide Imposto de Renda sobre ganho de capital pela só efetivação do leilão ou de celebração do contrato respectivo, e de que só ocorrerá ganho de capital tributável por ocasião da realização desse ganho pela alienação das ações adquiridas, por via de permuta.

 

Ainda em um segundo parecer do então procurador-geral da Fazenda Nacional, aprovado pelo então ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira, em despacho de 08 de maio de 1992, afirma-se:

 

“21. Criar-se fictamente, na permuta de bens, um ganho de capital é violar o próprio patrimônio. A sua tributação configuraria, por conseguinte, imposto sobre a propriedade e não sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Não existe lei mandando cobrar imposto na permuta de bens, não onerosa. Ainda que existisse tal diploma legal, seria fulminado pelo vício insanável da inconstitucionalidade”.

 

Pois bem, é absolutamente cristalino que a permuta não importa realização de ganho de capital, mas, no exemplo citado no artigo, o contribuinte deveria agradecer a compreensão da Receita Federal por lhe permitir, ao declarar oportunamente uma operação de troca de ações — não sujeita a tributação na forma da lei —, pagar o imposto sobre ganho de capital, como se de uma compra e venda (tributável) se tratasse. E isso, simplesmente, porque esse é o entendimento da administração tributária. Porque a administração tributária poderá arrogar-se o direito de não reconhecer os efeitos da operação de permuta (não tributável), com amparo no artigo 9º da MP 685/2015.

 

Ora, isso nada mais é que a tributação sem lei que estabeleça, por puro e simples emprego de analogia, o que é vedado pelo parágrafo 1º do artigo 108 do CTN, por configurar uma das mais graves violações ao princípio da legalidade.

 

A administração tributária, com o devido respeito, não pode ter entendimentos contrários à lei. O exemplo citado da permuta é apenas um entre diversos negócios jurídicos perseguidos à exaustão, para eliminar o direito dos contribuintes de planejar suas atividades e adotar as melhores opções que a lei lhes faculta.

 

A MP 685/2015, ao legitimar a tributação por analogia, está acabando com direito de opção dos particulares, fenômeno típico dos Estados totalitários. A morte do direito de escolha, do direito de planejar, do direito de optar, não pode ser tolerada se o Brasil ainda pretende ser um Estado Democrático de Direito.

 

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Dedico esta coluna à minha amiga Rachel Balassiano, que enfrenta uma perda irreparável. Força e coragem, Rachel, nada como o tempo, compositor de destinos; ele virá (que eu vi).

 

[1]http://www.conjur.com.br/2015-ago-20/psb-supremo-obrigacao-informar-planejamento-fiscal.

[2]Cfr. Rubens Gomes de Sousa, Pareceres 2, Imposto de Renda, São Paulo 1975, 35 ss.; Bulhões Pedreira, Imposto de Renda – Pessoa Jurídica, I, 1979,  p. 196 ss.

[3]A exposição de motivos do Ministério da Fazenda que encaminhou o projeto do Decreto-lei 1.598/77 declara que “o presente adota a orientação geral de submeter os ganhos de capital ao imposto somente quando realizados, isto é, quando a pessoa jurídica tem condições financeiras para suportar o ônus tributário”.

 

Fonte: Conjur