Anular créditos de ICMS é inconstitucional

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Como bem se sabe, o direito ao crédito de ICMS é expressamente assegurado pelo artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição da República...

Por Alexandre Venturini

 

Como bem se sabe, o direito ao crédito de ICMS é expressamente assegurado pelo artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição da República. A limitação relativa ao aproveitamento do crédito do imposto, decorrente de aquisições de mercadorias, restringe-se apenas e tão somente aos casos de isenção ou não incidência, conforme previsão do § 2º, inciso II, alíneas a e b, do artigo 155, da Magna Carta.

 

Assim é que, não sendo o caso de isenção ou não incidência, o exercício do direito ao crédito do ICMS pelo contribuinte que adquire insumos ou mercadorias destinadas a revenda não pode sofrer qualquer restrição senão pela própria Constituição Federal, sob pena de manifesta violação ao princípio da não-cumulatividade.

 

De acordo com o Professor Paulo de Barros Carvalho: “A não-cumulatividade dista de ser mera recomendação do legislador constituinte, para fins de orientação das entidades tributantes. É diretriz básica, sem observância da qual se quebra a homogeneidade do imposto, rompendo-se o programa nacional que a Constituição estipulou. Nenhum estado ou o Distrito Federal poderá passar ao largo desse princípio. É algo que se impõe com caráter incisivo a todos os destinatários” (in “Guerra Fiscal – Reflexões Sobre a Concessão de Benefícios No Âmbito do Icms”; SP; Ed. Noeses, 2012, p. 64).

 

O mecanismo da não-cumulatividade há sempre que ser observado, fazendo nascer para o contribuinte, toda vez que ele adquire uma mercadoria ou um serviço com incidência do imposto, um crédito fiscal, que não pode sofrer quaisquer restrições por parte do legislador infraconstitucional ou pela Fazenda Pública.

 

Fixadas estas premissas, é possível concluir, sem maiores esforços, pela ilegitimidade da glosa, empreendida pelo estado de destino de mercadorias, dos créditos de ICMS tomados por empresa adquirente, com base em documento fiscal emitido por empresa sediada em outro estado - que goza de incentivos fiscais, previstos em normas não submetidas à aprovação do Confaz - com destaque do imposto, sendo conflitante com a Carta da República, no particular, o diploma normativo que trata deste tema.

 

Referido Diploma Normativo, consubstanciado na Lei Complementar 24/1975, estabelece o seguinte, naquilo que interessa ao presente estudo:

 

“Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.

 

Parágrafo único - O disposto neste artigo também se aplica:

 

(...) IV - à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus; (...)”

 

“Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.

 

§ 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação.

 

§ 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.

 

§ 3º - Dentro de 10 (dez) dias, contados da data final da reunião a que se refere este artigo, a resolução nela adotada será publicada no Diário Oficial da União.”

 

“Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:

 

I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;

 

II - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.”

 

Ora, conforme já explicitado, o direito ao crédito de ICMS, como direito constitucional que é (artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição) não pode sofrer qualquer restrição senão pela própria Constituição.

 

Em sendo assim, não há como negar que realmente mostra-se conflitante com a Magna Carta, porquanto contrária ao princípio da não-cumulatividade, a previsão contida no artigo 8º, da LC 24/1975, segundo a qual serão glosados, pelo estado de destino, os créditos de ICMS, decorrentes de aquisições de mercadorias de empresas sediadas em outras Unidades da Federação, que gozam de incentivos fiscais, previstos em normas não submetidas à aprovação do Confaz.

 

Como bem observado pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho: “Não podemos esquecer que o texto constitucional atribui ao legislador complementar a competência para fixar a forma de concessões das isenções, incentivos e benefícios fiscais, sem, no entanto, permitir a determinação de sanções à sua inobservância, muito menos quando a sanção estabelecida acarreta a anulação de créditos, em manifesta violação ao princípio da não-cumulatividade, e possibilita a exigência de ICMS pelo estado ou Distrito Federal de destino da mercadoria ou serviço, pessoa política que, nos termos da Constituição da República, não é competente para tanto” (oc., p. 73).

 

A previsão contida no já referido artigo 8º, da LC 24/75, também encontra óbice no pacto federativo, na presunção de validade das leis e na competência do Poder Judiciário, na medida em que não se mostra possível permitir que um estado da Federação, ao se sentir lesado pela lei de outro estado, julgue tal lei como inconstitucional (por descumprimento da forma exigida para a concessão do benefício ou incentivo fiscal) e, a partir de tal julgamento, passe a adotar postura de retaliação em relação ao mesmo (não aceitando créditos oriundos de aquisições feitas de estabelecimentos localizados no estado que concedeu o benefício fiscal e exigindo, por via indireta, tributos por ele não cobrados).

 

Tal conduta insere-se no conceito de autotutela, que é expressamente vedada no ordenamento jurídico pátrio, o qual prevê que toda e qualquer ameaça ou lesão a direito deve ser apreciada pelo Poder Judiciário (artigo 5º, incisos XXXV e XXXVII, da Constituição).

 

A aferição quanto à constitucionalidade de determinada norma que venha a conceder este ou aquele benefício ou incentivo fiscal, ainda que sem aprovação do Confaz, é tarefa exclusiva do Poder Judiciário, mais precisamente do Supremo Tribunal Federal.

 

A propósito do tema:

 

“Não pode, entretanto, um Estado-membro da Federação impugnar, glosando-o, o crédito de ICMS destacado em documento fiscal, sob o pretexto de violação ao art. 155, parágrafo 2º, ‘g’, da CF (...) Não será correto reconhecer ao Estado-membro competência para, independentemente de um posicionamento jurisdicional, sobretudo em ação declaratória de inconstitucionalidade da lei ou dos atos infralegais impugnáveis, glosar o crédito havido como indevido. Ser ou não devido o creditamento do ICMS, nas relações interestaduais, é algo que somente pode ser indicado, em nosso regime federativo, pelo Supremo Tribunal Federal. O contrário importaria admitir pudesse um Estado-membro desconstituir por portas travessas a legalidade editada por outro, com comportamento ofensivo à federação, naquilo que é atributo essencial do pacto federativo nacional, a harmonia interestadual. E portanto instaurar-se-ia o império da desarmonia, contra a arquitetônica constitucional do federalismo brasileiro”  (oc., p. 76).

 

Destarte, se outro estado da Federação concede benefícios fiscais de ICMS sem a observância das regras da LC 24/75 e sem autorização do Confaz, cabe ao estado lesado obter junto ao STF, por meio de ADI, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo daquele outro estado e não simplesmente autuar os contribuintes sediados em seu território.

 

A jurisprudência do STJ alberga o entendimento até aqui esposado, conforme o precedente RMS 31.714/MT, de Relatoria do Min. CASTRO MEIRA, da 2ªT, julgado em 03/05/2011, publicado no DJe em 19/09/2011.

 

Do julgado supra citado, extrai-se a seguinte passagem:

 

“(...) Recentemente, a Ministra Ellen Gracie concedeu antecipação de tutela em ação cautelar (AC 2611/MG) para suspender a exigibilidade de tributo cobrado pelo Estado de Minas Gerais decorrente de glosa ao creditamento realizado por contribuinte sediado em seu território que adquiriu mercadorias oriundas do Estado de Goiás.

 

No decisum, a eminente Relatora deixa claro que o único caminho possível a ser percorrido pelos Estados que se sintam prejudicados pela chamada ‘Guerra Fiscal’ é a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra as normas locais de outra unidade federada que não respeitem as disposições constitucionais e legais relativas à concessão de benefícios fiscais no âmbito do ICMS. (...)”

 

Vale a transcrição de trecho da decisão da ministro Ellen Gracie, proferida na AC nº 2611/MT, referida pelo ministro Castro Meira:

 

“(...) É que o Estado de Minas Gerais, inconformado com a inconstitucionalidade de crédito de ICMS concedido pelo Estado de Goiás, teria glosado parcialmente a apropriação de créditos nas operações interestaduais, com isso ofendendo a sistemática da não-cumulatividade desse imposto e a alíquota interestadual fixada pelo Senado, ambas com assento constitucional.

 

Entendo, pois, que há relevante discussão de índole constitucional, de modo que é o caso de reconsiderar a decisão recorrida e de conhecer do pedido de liminar.

 

4. A pretensão de suspensão da exigibilidade do crédito, com a consequente suspensão da execução fiscal, merece acolhida.

 

Há forte fundamento de direito na alegação de que o Estado de destino da mercadoria não pode restringir ou glosar a apropriação de créditos de ICMS quando destacados os 12% na operação interestadual, ainda que o Estado de origem tenha concedido crédito presumido ao estabelecimento lá situado, reduzindo, assim, na prática, o impacto da tributação.

 

Note-se que o crédito outorgado pelo Estado de Goiás reduziu o montante que a empresa teria a pagar, mas não implicou o afastamento da incidência do tributo, tampouco o destaque, na nota, da alíquota própria das operações interestaduais.

 

Ainda que o benefício tenha sido concedido pelo Estado de Goiás sem autorização suficiente em Convênio, mostra-se bem fundada a alegação de que a glosa realizada pelo Estado de Minas Gerais não se sustenta. Isso porque a incidência da alíquota interestadual faz surgir o direito a apropriação do ICMS destacado na nota, forte na sistemática de não-cumulatividade constitucionalmente assegurada pelo art. 155, § 2º, I, da Constituição e na alíquota estabelecida em Resolução do Senado, cuja atribuição decorre do art. 155, § 2º, IV.

 

Não é dado ao Estado de destino, mediante glosa à apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeitos aos créditos apropriados pelos contribuintes.

 

Conforme já destacado na decisão recorrida, o Estado de Minas Gerais pode arguir a inconstitucionalidade do benefício fiscal concedido pelo Estado de Goiás em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, sendo certo que este Supremo Tribunal tem conhecido e julgado diversas ações envolvendo tais conflitos entre Estados, do que é exemplo a ADI 2.548, rel. Min. Gilmar Mendes, FJ 15.6.2007.

 

Mas a pura e simples glosa dos créditos apropriada é descabida, porquanto não se compensam as inconstitucionalidades, nos termos do que decidiu este tribunal quando apreciou a ADI 2.377-MC, DJ 7.11.2003, cujo relator foi o Min. Sepúlveda Pertence:

 

‘2. As normas constitucionais, que impõem disciplina nacional do ICMS, são preceitos contra os quais não se pode opor a autonomia do Estado, na medida em que são explícitas limitações.

 

3. O propósito de retaliar preceito de outro Estado, inquinado da mesma balda, não valida a retaliação: inconstitucionalidades não nãos e compensam.’

 

O risco de dano está presente no fato de que a sede administrativa da Requerente está na iminência de ser leiloada.

 

5. A pretensão manifestada pela Requerente não equivale, propriamente, à simples atribuição de efeito suspensivo ao recurso extraordinário. Para que seja obstado o curso da Execução Fiscal, faz-se necessária a concessão de tutela com tal efeito, conforme já destacado por este Tribunal por ocasião do julgamento da AC 2.051 MC-QO, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJe 9.10.2008. A pretensão, pois, em verdade, exige a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

 

6. Ante o exposto, reconsidero a decisão anterior, conheço da ação cautelar e concedo medida liminar, para suspender a exigibilidade do crédito em cobrança, nos termos do art. 151, V, do CTN, sustando, com isso, a execução e os respectivos atos expropriatórios.”

 

Como se vê, também a Corte Suprema já expressou entendimento a respeito do tema ora em debate, assentando que a glosa pura e simples de créditos apropriados por contribuintes sediados no estado de destino é ilegítima, pois não é aceitável que um erro seja compensado com outro, devendo o equívoco cometido pelo estado de origem – ao conceder benefícios de ICMS ao arrepio das normas que exigem autorização do Confaz – ser solucionado no âmbito do Poder Judiciário, por meio da propositura de ação direta de inconstitucionalidade.

 

Os precedentes acima transcritos estão a revelar que a jurisprudência pátria impõe a observância, pelo estado de destino, do crédito de ICMS tomado pelo contribuinte sediado em seu território, decorrente de aquisição de mercadorias de empresa sediada em outra Unidade da Federação, mesmo que tal empresa goze de benefício fiscal que não foi submetido à aprovação do Confaz.

 

Fonte: Conjur