Reformas do federalismo fiscal avançam no Brasil

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Ao tratar dos desafios do federalismo brasileiro, em conferência realizada em 3 de junho passado no 10° Congresso Nacional da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite)...

Por Heleno Taveira Torres

 

Ao tratar dos desafios do federalismo brasileiro, em conferência realizada em 3 de junho passado no 10° Congresso Nacional da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), em Bento Gonçalves (RS), ressaltei a importância dos avanços que podem advir da ampla reforma fiscal que está em curso em nosso país, tanto dos estados quanto dos municípios, na esperança de que seja igualmente portadora de mais justiça fiscal. A ninguém interessa a ineficiência ou a perda de capacidade financeira dos entes federais, que devem ser dotados de Fiscos competitivos e indutores do desenvolvimento.

 

Uma realidade inequívoca é que o federalismo fiscal está em evidência[1] e carece de medidas fundamentais para soluções de seus distintos problemas. Nesse empenho, está em curso expressiva reforma tributária e federativa, patrocinada pelo Senado e pelo Ministério da Fazenda, que não pode esperar. Sabe-se que o adiamento de soluções trará prejuízos para todos, pelas múltiplas repercussões da reforma federativa. Daí a urgência da solução da crise política instalada.

 

A reforma do federalismo fiscal revela-se como tema central do nosso constitucionalismo, cujos desafios não se limitam ao ICMS e sua fratricida “guerra fiscal”. Não obstante, essa é, de longe, a questão mais emergencial.

 

Nesse sentido, a primeira ação impulsionada pelo Senado veio em 2012, quando foi publicada a Resolução 13/2012 contra a chamada “guerra dos portos”, para modificar a alíquota do ICMS na importação (4%). Essa medida, apesar de inibidora dos incentivos agressivos na importação, guarda dificuldades práticas, tanto pela burocracia quanto pelas diferenças de alíquotas interestaduais fundadas na agregação de “conteúdo nacional”. Na verdade, somente com a uniformização das alíquotas interestaduais do ICMS poder-se-á ver a eliminação integral dessas dificuldades ainda abertas.

 

Para introduzir a cobrança no destino do ICMS, veio em seguida o Projeto de Resolução (PRS) 1/2013, mediante redução das alíquotas interestaduais (7/5/2013). Em 13 de maio de 2015, o Senado retomou essa discussão, e atualmente encontra-se em debate a mudança do percentual das alíquotas do ICMS, que podem ser unificadas nos estados entre 4% e 7%, progressivamente. Esse projeto segue em debate, mas no que concerne às operações interestaduais do ICMS, recentemente em 16 de maior de 2015, foi promulgada a Emenda Constitucional 87/2015, que reparte entre estados de origem e de destino o ICMS da venda pela internet (a partir de 2019, a alíquota será 100% do estado de destino).

 

Quanto às dívidas de ICMS decorrentes da glosa de créditos de ICMS no estado de destino, em virtude dos incentivos fiscais reconhecidamente inconstitucionais, em 7 de maio de 2015, o Plenário do Senado aprovou o PLS 130/2014, proposto pela senadora Lúcia Vânia (sem partido/GO), para convalidar os referidos créditos derivados de incentivos fiscais concedidos em modo divergente ao regime do art. 2º da LC 24/75. A reforma não está concluída e depende ainda de proposta do Executivo instituindo fundo de compensação pelas perdas dos estados com a redução das alíquotas interestaduais.

 

A instituição do referido fundo adveio com a Medida Provisória 683, de 13 de julho de 2015, que o qualifica do seguinte modo: “Artigo 12. Fica instituído o Fundo de Auxílio Financeiro para Convergência de Alíquotas do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - FAC-ICMS, vinculado ao Ministério da Fazenda, com o objetivo de auxiliar financeiramente os Estados e o Distrito Federal durante o período de convergência das alíquotas do ICMS, compreendido como os oito anos seguintes ao efetivo início da convergência”. E o artigo 21 prescreve que a prestação do auxílio financeiro de que trata o art. 12 fica condicionada à: “I - apresentação de relação com a identificação completa de todos os atos relativos a incentivos ou benefícios fiscais ou financeiros cuja concessão não tenha sido submetida à apreciação do Confaz; II - celebração de convênio entre os Estados e o Distrito Federal por meio do qual sejam disciplinados os efeitos dos incentivos e benefícios referidos no inciso I e dos créditos tributários a eles relativos; III - aprovação de resolução do Senado Federal, editada com fundamento no inciso IV do parágrafo 2º do artigo 155 da Constituição, por meio da qual sejam reduzidas as alíquotas do ICMS incidente nas operações e prestações interestaduais; e IV - prestação, pelos estados e pelo Distrito Federal, das informações solicitadas pelo Ministério da Fazenda, necessárias à apuração do valor do auxílio financeiro de que trata esta Medida Provisória”. O fundo não se aplica a quem venha a conceder, prorrogar ou manter incentivo ou benefício fiscal ou financeiro em desacordo com a legislação.

 

A Medida Provisória 683/2015 criou ainda o “Fundo de Desenvolvimento Regional e Infraestrutura (FDRI), fundo especial de natureza contábil, vinculado ao Ministério da Fazenda, com a finalidade de reduzir as desigualdades socioeconômicas regionais, custear a execução de projetos de investimento em infraestrutura e promover maior integração entre as diversas regiões do país, nos termos do disposto no artigo 3º, caput, inciso III, da Constituição”. Em ambos os casos, condicionados à instituição e arrecadação de multa de regularização cambial tributária relativa a ativos mantidos no exterior ou internalizados.

 

O Congresso aprovou a Lei Complementar 148/2014, que limitou os juros reais a 4% ao ano (ou Selic, o que for menor), mais correção pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), nos empréstimos da União para estados e municípios. E, como supostamente a União não aplicou a redução dos encargos das dívidas, o PLC 15/2015 foi modificado pela Câmara para autorizar a regra impositiva a partir de 31 de janeiro de 2016, independentemente de regulamentação pelo Poder Executivo. Em vista disso, o artigo 1º, da Lei Complementar 151, de 5 de agosto de 2015, modificou a Lei Complementar 148/2014, para permitir que a União, nos contratos de refinanciamento de dívidas, conceda descontos sobre os saldos devedores dos contratos em valor correspondente à diferença entre o montante do saldo devedor existente em 1º de janeiro de 2013 e aquele apurado utilizando-se a variação acumulada da taxa Selic desde a assinatura dos respectivos contratos, observadas todas as ocorrências que impactaram o saldo devedor no período. E, no parágrafo único, do artigo 4º, que a União terá até 31 de janeiro de 2016 para promover os aditivos contratuais, independentemente de regulamentação, após o que o devedor poderá recolher, a título de pagamento à União, o montante devido, com a aplicação da Lei, ficando a União obrigada a ressarcir ao devedor os valores eventualmente pagos a maior.

 

Houve também a apresentação de Emenda ao PLC 15/2015, para permitir aos estados e municípios o repasse de depósitos judiciais para suas contas únicas de 70% de todos os depósitos judiciais ou administrativos. Os 30% remanescentes serão mantidos em um fundo de reserva nas instituições financeiras públicas. Trata-se de medida que chega tardiamente, haja vista esse procedimento ser adotado pela União desde 1998, com procedimento já examinado e considerado constitucional pelo STF.

 

Conforme o artigo 3º, da Lei Complementar 151, de 5 de agosto de 2015, “a instituição financeira oficial transferirá para a conta única do Tesouro do Estado, do Distrito Federal ou do município 70% (setenta por cento) do valor atualizado dos depósitos referentes aos processos judiciais e administrativos de que trata o artigo 2º, bem como os respectivos acessórios”. Ao mesmo tempo, os parágrafos 1º e 3º asseguram que “deverá ser instituído fundo de reserva destinado a garantir a restituição da parcela transferida ao Tesouro” e “cujo saldo não poderá ser inferior a 30% (trinta por cento) do total dos depósitos”, acrescidos da remuneração que lhes foi atribuída. Pelo parágrafo 5º, os valores recolhidos ao fundo de reserva terão remuneração equivalente à taxa Selic para títulos federais. E, para proteger o direito dos jurisdicionados, o artigo 8º dispõe que encerrado o processo litigioso com ganho de causa para o depositante, mediante ordem judicial ou administrativa, o valor do depósito efetuado, acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída, será colocado à disposição do depositante pela instituição financeira responsável, no prazo de três dias úteis.

 

Portanto, com o depósito do valor integral do débito, inclusive dos juros de mora devidos até então, a responsabilidade pela atualização do débito e pelo acréscimo dos juros remuneratórios passa a ser da instituição financeira na qual se encontram os valores. Não há qualquer novidade. É o mesmo regime que se verifica com a Lei 9.703/98, que determinou que os depósitos judiciais devem ser atualizados pela Selic (parárafos 4º, do artigo 39, da Lei 9.250/95), que será a mesma taxa de juros aplicável aos créditos tributários, ao final da controvérsia. Com isso, o depósito implica a perda temporária da disponibilidade de recursos pelo contribuinte e o direito de uso imediato pela Fazenda Pública nas finalidades definidas no artigo 7º, da Lei Complementar 151/2015. Esse repasse do depósito judicial à conta única do Tesouro Nacional foi declarado constitucional pelo STF, no Julgamento da ADI 1933/DF[2].

 

Em junho de 2013, o Congresso aprovou a Lei Complementar 143/2013, que instituiu novas regras de rateio do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Mais tarde, em 5 de agosto de 2014, veio a Emenda à Constituição 84/2014, que aumentou em 1% o repasse de recursos da União para o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Não é demais recordar que, em 24 de fevereiro de 2010, o STF julgou procedentes as ações para declarar a inconstitucionalidade do artigo 2º, da Lei Complementar 62/1989, mantida sua aplicação até 31 de dezembro de 2012. Sobreveio, então, a Lei Complementar 143/2013, que igualmente já se encontra submetida a contestação, pela ADI 5.069, com relatoria do ministro Dias Toffoli.

 

Espera-se ainda o debate e eventual aprovação dos seguintes projetos, dentre outros de semelhante importância e repercussão sobre o federalismo, a saber:

 

- PEC 172/2012, do deputado Mendonça Filho (DEM-PE), que veda qualquer transferência, feita pela União, de encargo ou prestação de serviços a estados, Distrito Federal ou municípios sem a previsão dos repasses financeiros necessários ao seu custeio;

- PLS 86/2013, do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), o qual reduz a zero a contribuição para o PIS/Pasep incidente sobre receitas arrecadadas por estados e municípios, inclusive as transferidas pela União;

- PLS 312/2013, de autoria do então senador Pedro Simon, que determina à União a entrega aos estados, em parcelas mensais, do montante equivalente às perdas de arrecadação decorrentes das desonerações de exportações de produtos primários e semielaborados (isenções previstas na Lei Kandir, Lei Complementar 87, de 1996);

- PLS 95/2015, do senador José Serra (PSDB-SP), o qual institui o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico, afasta a obrigação das empresas de saneamento de recolherem PIS/Pasep e de Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e

- PLS 375/2015, do senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE), que institui o ambicioso programa de Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), para conferir meios para reduzir as desigualdades regionais e fortalecer a coesão social, econômica, política e territorial do Brasil.

 

Existe uma série de outras medidas e propostas em tramitação, tanto no Ministério da Fazenda quanto no Senado Federal, para o aprofundamento das reformas do pacto federativo brasileiro. Recentemente, a Comissão Especial para o Aprimoramento do Pacto Federativo (CEAPF), instituída no Senado em 26 de maio de 2015, e com duração até 8 de setembro, apresentou seu primeiro relatório para rediscutir o modelo de financiamento de estados e municípios e sistematizar e priorizar as várias propostas em tramitação no Senado Federal sobre o tema[3].

 

Essas são partes de uma ampla reforma silente do ICMS e do federalismo fiscal brasileiro, mas não são os únicos entraves fiscais enfrentados pelo federalismo brasileiro. Há outros que estão na agenda fiscal.

 

O primeiro, aparentemente, não tem relação com estados e municípios. Trata-se da renovação da Desvinculação de Recursos da União (DRU), pela qual o governo pode transferir até 20% da arrecadação para outras despesas, como o pagamento de dívidas. O Congresso aprovou a PEC 114/2011, que prorrogou a DRU até 31 de dezembro de 2015. O total da desvinculação gira em torno de 70 bilhões. O desafio será a sua renovação. É induvidoso que se a União não obtiver a referida autorização isso trará repercussão negativa para todos, porquanto não disporá de recursos para diversas despesas, inclusive as que podem ser assumidas com a reforma do pacto federativo, acima mencionadas (renovação de contratos, fundos de compensação e outros).

 

Outro grande desafio é a reforma do sistema de decisão de conflitos, pelo processo administrativo e pela excecução fiscal. Em média, 40% das ações judiciais em curso em todo o país são de natureza tributária. Afora isso, tem-se um passivo total superior a R$ 2,5 trilhões em todo o federalismo. O processo administrativo reclama lei complementar que traga regime uniforme de formalidades e procedimentos em comum. A reforma da lei de execução fiscal igualmente pode ampliar a recuperação de recursos, com maior brevidade e eficiência.

 

Ao mais, é preciso avançar nos sistemas de fiscalização com mútua assistência entre a União, os estados e municípios, para reduzir a evasão e as fraudes tributárias.

 

Por todos esses motivos, é muito oportuna a reforma do federalismo fiscal, que não se limita a ser modelo de repartição espacial das unidades federadas, mas carrega consigo a expectativa de servir como cláusula de identidade constitucional. Restabelecer a capacidade financeira dos estados e municípios é uma das mais urgentes demandas do nosso país. Claramente, muito se queda dependente de decisões políticas, mas é algo que não pode esperar e reclama compromisso de todos.

 

Dentre todos, o maior desafio consiste em criar condições para a retomada do crescimento econômico, fomentar o desenvolvimento e ampliar a capacidade de financiamento das administrações de estados e municípios, dos investimentos em infraestrutura, bem como dos recursos destinados à educação, à saúde e às mais variadas políticas públicas regionais. Contudo, esse processo de reformas não pode esquecer-se dos contribuintes, das melhorias do sistema tributário para permitir a suportabilidade da carga tributária, a simplificação na arrecadação dos tributos e no equilíbrio entre todos, para eliminar hipóteses de vantagens indevidas ou excessivo de tributos sobre alguns. No Estado Democrático de Direito, não há sistema tributário eficiente sem justiça fiscal.

 

Para avaliar essas e outras alterações normativas, neste semestre ministraremos nos cursos de doutorado e mestrado da Faculdade de Direito da USP a disciplina Federalismo Fiscal, juntamente com o professor Fernando Facury Scaff, para promover uma ampla reflexão sobre a respectiva acomodação ao nosso modelo constitucional. A universidade deve ter o papel da crítica e compromisso permanente com a construção de medidas de transformação da sociedade e do Estado. E, passados mais de 25 anos de vigência da Constituição de 1988, é chegada a hora do aprimoramento sistêmico do nosso federalismo fiscal, historicamente o mais longevo do constitucionalismo brasileiro.

 

Fonte: Conjur